amores expresos, blog do Joca

Wednesday, June 20, 2007

MA’IS SALAAMA – A PARTIDA


E, afinal, o trigésimo-primeiro dia chegou.

Acordamos cedinho, pois o avião saía às 7h20. Nos despedimos do pessoal do Odeon. Deixei um baqshish salvador pra rapaziada, além de um exemplar em português de “Miramar”, de Naguib Mahfuz, para o Wael, o professor de línguas. Que lindo. Que maravilhoso. O taxista que eles tinham arranjado nos esperava com seu Fiat 147 possante. Wael deve ter adorado aquele livro em português. “Mas que porra de língua é essa?”, deve ter pensado.

Depois de 31 dias convivendo com a hospitalidade egípcia, acho que terei pesadelos por muitos anos com a palavra “welcome”. Por onde quer que eu andasse no Cairo eu ouvia “welcome”. Eram crianças me seguindo e dizendo “welcome”. Comerciantes que diziam “welcome” à medida que eu passava. Mulheres com os rostos escondidos detrás dos hegab fazendo reverências e murmurando “welcome” para mim. E até cabras balindo “béééélcome”. Era apavorante. Ao acordar pela manhã para ir comprar pão na El-Abd, bastava colocar o pé na calçada para a rua inteira deixar de fazer o que estava fazendo só para dizer “welcome”. Todo santo dia. O mesmo inferno. Em certa ocasião me escondi num beco de um bairro distante. Era uma rua de terra e não havia ninguém à vista, quando, do fundo de uma porta escura onde não era possível enxergar nada, saiu a voz trêmula de algum moribundo dizendo “welcome”. Pra mim chegava. Era o fim.

Entramos no táxi, eu e a Egípcia do Crato. O avião faria escala em Paris, onde ficaríamos por mais 15 dias, nos recivilizando e nos amando no covil sensual da espiã sexy. Notamos, porém, logo na primeira fala, que o motorista não falava patavinas de inglês. “Tudo bem”, eu pensei, “aqui não tem mesmo outro aeroporto. Não pode ter erro”. E seguimos em frente. No primeiro minuto, o motorista acendeu um cigarro. No Cairo é assim: os taxistas fumam e oferecem um cigarro. “La’, shukran”, eu disse, esbanjando meu árabe. Eram 4h30 da manhã, pombas. Ainda não era hora. E o Fiat 147 voava nas avenidas vazias. O taxista acelerava, acelerava e então aproveitava a banguela, até quase o carro morrer. Fazia isso e ria. Egípcios, nunca mais. E assim foi até o aeroporto, a 35km do centro da cidade. Acelerava, acelerava e banguela. Depois ria e acendia outro cigarro.

Chegamos no aeroporto. Pelo que entendi, o taxista nunca havia pisado no lugar. Apontei a placa dizendo “Terminal 1 – embarques internacionais”. Não tinha erro. Quando lá chegamos, me despedi com alívio do taxista. Ele ofereceu um cigarro. Agradeci, desperdiçando meu árabe: “La’, shukran”, eu disse. Ele foi embora e ficamos a não ver nada, eu e a Egípcia do Crato, nem navios, nem aviões e muito menos a plataforma de embarque. O egípcio sonolento do guichê de informações me informou, depois de três bocejos, que a placa estava errada, e a plataforma de embarque correta era no Terminal 2. “Mas é muito longe, não dá pra ir a pé. Espera o ônibus branco aí na frente. Em 10 minutos ele passa”, ele disse, bocejando mais uma vez. Nós ainda tínhamos algum tempo. Não estávamos totalmente atrasados, graças ao esquema “acelera, acelera e banguela” do taxista. Não tinha erro. Claro que não.

Meia hora depois e nada de ônibus. Àquela altura eu já pensava na revista Veja, no Reinaldo Aze(ve)do, nos leitores do TodoProsa e em todo o estafe do Cosmopolitan Hotel me amaldiçoando. Minha paranóia enfiou a manopla na cuíca: será que o taxista e o cara do guichê de informações eram apenas mais duas mirisolettes disfarçadas? Não podia ser. Com as tempestades que a Egípcia do Crato vinha promovendo em minha horta eu achava que aquela maldição já tinha sido levada pelo vento para outras plagas, quem sabe para Istambul ou Lisboa. “Paris não”, eu pensava, “de jeito nenhum.” Foi então que apareceu outro taxista. “No bus”, ele dizia, “taxi”, e apontava para o seu Fiat 147 caindo aos pedaços. Juro que eu não quis ser indelicado com ele. Mas não teve jeito. E como é bom poder latir uns palavrões nessa nossa língua que ninguém (nem mesmo a gente) entende. O cara saiu correndo, na medida em que seu Fiat 147 lhe permitia.

E nada do ônibus. Já devíamos ter nos apresentado ao check in fazia tempo e nem sinal do ônibus. Até que o motorista de uma outra linha se apiedou de nós e deu uma carona até o lugar em que o ônibus correto aguardava sabe-se lá o quê. Uma bomba de Israel? O retorno de Cleópatra? “Egípcios nunca mais”, eu pensava. E enfim chegamos ao Terminal correto e, felizmente, ao final desta história.

Eu poderia continuar e contar a vocês outras coisas mais e que o vôo do Cairo até Paris foi o pior de minha vida, graças ao aperto da poltrona e de uma luta formidável que eu travava com meu aparelho digestivo fazia uns 15 dias, vencida em parte devido à inestimável ajuda recebida das hostes do Faraó IMOSEC I, porém acho que este blog já cumpriu o seu intento de narrar minhas desventuras nas longínquas terras do país de Misr. Agradeço a todos os que me acompanharam até aqui e os convido à minha casa, onde volto a postar a partir de julho. Prometo também colocar nesta página em breve um link com as fotos da viagem, assim que forem reveladas.

Quanto à “Maldição do Cosmopolitan Hotel” e ao amor propriamente dito, melhor encerrar com essa notável expressão retirada das histórias em quadrinhos e daqueles antigos seriados exibidos no cinema e que diz muito sobre as expectativas em torno desse sentimento incondicional:

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]

Um grande abraço a todos!

Joca Reiners Terron

Paris, 21 de junho de 2007

Monday, June 18, 2007

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL VIII

O vento frio ao longo da avenida Champs Élysées despenteava plátanos e castanheiras sob a luz minguante do sol poente até culminar na Place de la Concorde, erguendo a lapela do casaco à altura de meu rosto como na tentativa de um beijo roubado. O súbito obstáculo soprado pela ventania tapou por breves instantes a figura da Egípcia do Crato recortada contra o sol e vinda em minha direção com seu passo largo e algo marcial, aprendido em alguma escola de espiãs sexys. Nós aproveitávamos a estada em Paris para visitar o obelisco trazido de Luxor no século XIX e instalado ali na praça, além de dar um tchauzinho para os amigos egípcios na forma de hieroglifos esculpidos no monumento (“Welcome, welcome”, diziam os gatos e as íbis em baixo-relevo no granito).

Eu não esperava que aquele obelisco me contasse a história de amor que Tutankhamon e a Esfinge não foram capazes de contar, claro, mesmo porque eu já vivia a minha própria love story e não precisava mais que ninguém me contasse porra nenhuma. Não posso negar minha surpresa, entretanto, ao enxergar inesperadas conotações amorosas e sexuais nos textos e desenhos dispostos no pedestal e que explicam a halace, virement et erection de l’obelisque par M. Lebas, ingénieur na Place de la Concorde. Afinal um monumento histórico egípcio me contava qualquer coisa que se relacionasse a esse montanhoso sentimento pleno de altos e baixos (e que às vezes até mesmo carece de auxílio técnico do departamento de engenharia), e tinha de ser um monumento em forma de falo, sem dúvida.

Foi relembrando a viagem que eu e a Egípcia do Crato fizemos a Luxor e observando aquela ereção gigantesca que ameaçava inundar o vizinho Jardin des Tuilleries que de novo comecei a digredir, tecendo considerações sobre a forma com que os egípcios se relacionam entre si e com os outros cidadãos deste planeta tão confuso. Há duas semanas atrás, no dia 3 de junho, eu e ela caminhávamos na Corniche El-Nil (o calçadão que margeia o Nilo e de idêntico nome ao do seu similar no Cairo) sob a luz atordoante do meio-dia no Vale do Nilo quando, a cerca de 15 metros de nós, um homem calmamente levantou a sua gabbeyia (vocês já sabem, aquela túnica usada pelos egípcios) e começou a se masturbar. Ele estava sentado num dos diversos bancos dispostos na calçada e olhava para a Egípcia do Crato e para mim, nos homenageando ao vivo e em cores à medida que desfilávamos nossos corpinhos inspiradores diante de seus olhos apaixonados. De imediato meus brios de macho cristão civilizado me levaram a pensar se não seria o caso de um discreto corretivo no louco, mas acabei concluindo que, hum, bem, e se for absolutamente comum uma coisa desse tipo acontecer no Egito? Sim, pois casos de estupros e masturbadores furtivos que “homenageiam” turistas em cemitérios ou em outros lugares menos inapropriados são relatados com absurda frequência em todos os guias de viagem, e mais ainda – e com maior riqueza de detalhes -- nos fóruns da internet. Acabei deixando pra lá (afinal, quem sou eu para corrigir o desejo de alguém, um Delegado da Bronha Alheia?) e seguindo caminho. Quando olhei para trás, o punheteiro já tinha deixado de olhar para a minha bunda e transferia toda a sua concentração manual e inspiracional às duas americanas de shortinho que vinham atrás de nós. Torço para que elas tenham conseguido se desviar dos perdigotos a tempo.

A semana de intensa paixão que se iniciara no litoral de Alexandria, porém, e prosseguia ali, às margens espetaculares do Nilo em Luxor, já havia me fornecido suficiente know how a respeito do impressionante interesse lúbrico dos homens egípcios em relação às ocidentais e também em relação aos ocidentais, o que não chega a ser um escândalo para mim (dada a tradição de turismo homossexual por aquelas bandas, que remonta a Alexandre, o Grande, chegando até William Burroughs e Paul Bowles). O fato é que pode ser um verdadeiro martírio para um sujeito possessivo caminhar acompanhado de sua mulher pelas ruas do Egito. A auto-estima gigantesca que os egípcios carregam é embasbacante e fará com que qualquer um deles, e quando digo qualquer um é qualquer um mesmo, do mendigo ao desdentado, do balofo ao tiozinho-fim-de-carreira, aborde a mulher ao seu lado à sua passagem. E nada é suficiente para convencê-los de que aquela mulher não está disponível, e se ela não estiver de braços dados com você, a coisa certamente atingirá níveis insuportáveis. Para ela, principalmente.

Não custa lembrar que os homens e os deuses, de acordo com a mitologia dos antigos egípcios, nasceram de uma ejaculação do deus Atum, representado pelo sol poente. Ou seja, de acordo com os egípcios, o universo surgiu de uma punheta batida pelo Sol. Talvez esse fundo mitológico e poético não justifique a sem-vergonhice galante dos egípcios atuais, mais provavelmente fundada em heranças culturais relacionadas à segregação feminina. No Egito islâmico as mulheres são e sempre foram mero detalhe, aquela dona responsável pela limpeza da casa e por cuidar dos filhos. Elas, de acordo com a tradição, não podem trabalhar fora e não podem cuidar de sua própria vida, cabendo aos homens todo e qualquer tipo de trabalho. No Egito é quase impossível, a não ser nas classes mais altas, ver mulheres trabalhando.

Essa segregação causou diversas mudanças de comportamento entre os homens, que andam de mãos dadas e abraçadinhos por todos os lugares, trocando aconchegos explícitos o tempo todo. Um hábito comum entre os homens egípcios, por exemplo, é o de “pegação” violenta. Aquelas famosas brincadeirinhas de luta que estamos acostumados a ver entre meninos impúberes, no Egito acontece com enorme frequência com homens de todas as idades, dos garotos aos velhinhos. Então é aquela encoxação meio histérica entre barbudos em todas as esquinas, bares e mesquitas. Falta de mulher, concluo, mesmo não entendendo nada. E olho aquela imensa multidão de mulheres engordando debaixo de roupas pretas que deixam apenas seus olhinhos tristes de fora e penso num poema de Rimbaud que acusa Cristo de ser um “eterno ladrão de energia”. Chego à conclusão de que com o profeta Muhammad não é diferente.

Deixando para trás a Corniche El-Nil e o triste masturbador solitário, apertei com toda a força a mão da Egípcia do Crato, dizendo o quanto a amo e que ela fizesse bom proveito de toda a energia que eu tiver para dar.

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]

Friday, June 15, 2007

O ATAQUE DAS MIRISOLETTES GIGANTES

Eu seguia pelas trilhas primaveris do Jardin de Luxembourg, curtindo meu doloroso processo de recivilização após um mês inteiro de pura barbárie cairota movida a Stellas e shishas em combustão quando, sob a luz do sol que ilumina tudinho e não esconde nadinha, uma furibunda gangue de mirisolettes gigantes tentou roubar minha mochila contendo preciosos manuscritos e moleskines inteiros preenchidos com os desenhinhos e esqueminhas para escrever uma história de amor imprescindíveis a um escritor cerebral feito eu.

Fiquei aturdido por instantes, principalmente com o cecê de Leite de Rosas Davene subtraído da mamãe exalado pelos sovacos das mirisolettes, mas consegui dar no pé a tempo. Como consegui escapar? Joguei uma caixa de comentários no chão e elas se distraíram, fazendo comentários malvadinhos sobre escritores descolados que nunca publicaram livros e a programação da Flapt 2009 durante horas seguidas. Depois coloquei um crachá no peito de cada um deles escrito “colunista” e disse “Pronto. Agora vocês podem brincar de adivinhar quem entra e quem não entra no futuro da literatura brasileira.”

E as mirisolettes gigantes ficaram lá, fazendo merda sozinhas sem encher o saco de ninguém, enquanto eu bebia umas cervejas (belgas -- chega de cervejas egípcias, ao menos por esta encadernação) bem longe dali.

Tuesday, June 12, 2007

UM NINHO DE OSSOS

Quem me contou esta história foi meu amigo Wael. Eu lhe perguntara se a dieta tão minguada de carne do dia a dia dos egípcios não o incomodava. E ele, como muçulmano devoto que é, em vez de responder “sim” ou “não”, me veio com uma parábola. A parábola parece ser mesmo um ponto de contato entre as religiões cristãs e o islamismo, e esta história me interessou pelo fato de não ser a verdade propalada por algum profeta secular, mas sim uma fábula urbana do Cairo contemporâneo.

Sentado atrás do front desk do Odeon Palace Hotel, Wael esclareceu vários mistérios que eu necessitava desvendar de uma só vez. O primeiro deles era por que os apartamentos do Odeon começavam apenas no 7º andar. O que poderia haver nos seis pisos abaixo do meu?, era o que eu me perguntava desde minha chegada. “Gente”, disse Wael, “mas não só gente”, continuou, acrescentando pitadas de enigma ao caldo de sua narrativa. “Tem bicho também, além de gente. Como a carne aqui é muito cara e as pessoas não têm dinheiro, elas começaram a criar bichos nas escadas e nos patamares de cada andar do prédio. Galinhas, pombos, patos, gansos e cabras, principalmente”, Wael disse, rindo de minha cara de espanto.

A história é também bastante indicativa da nostalgia rural experimentada pela população da cidade do Cairo, pensei com meus botões filosóficos, já que Wael me assegurou de que a criação de animais para subsistência das famílias não chega a ser privilégio do Odeon e que grande parte dos edifícios degradados do centro do Cairo abrigam suas granjas e currais internos, com pessoas convivendo com animais clandestinamente nos espaços interiores da megalópole. Confesso que o relato de Wael me aliviou um bocado, pois desde minha chegada eu vinha sonhando com balidos e cacarejos noturnos, a ponto de começar a questionar o equilíbrio de minha própria sanidade, talvez enlouquecida por alguma febre do deserto.

“Há cerca de cinco anos, porém, algo muito estranho aconteceu aqui no Odeon”, falou Wael, coçando o calo no meio de sua testa. “Um velho casal de coptas vivia no apartamento do sexto andar, até que a mulher morreu. O velho, que já era bastante fechado, depois da morte da dona isolou-se por completo, deixando de falar com os vizinhos e quase não saindo de casa”, ele prosseguiu, agora enrolando com cuidado um turbante na cabeça. “Com o passar do tempo, os moradores do Odeon descobriram que a mulher tinha morrido de câncer. Os egípcios são muito supersticiosos com o câncer. Se uma esposa adoece, por exemplo, o marido certamente a abandonará, afastando-a dos filhos com medo de que ela os contamine com a doença. Eles também nunca citam a parte do corpo tomada pelo câncer, pelo mesmo motivo.”

Pensando bem, essa ignorância temperada com misticismo não é de maneira alguma privilégio dos egípcios, fazendo lembrar as numerosas crendices que povoam os sertões brasileiros de Norte a Sul, com suas hordas de curandeiros e mil e uma benzeções e maldições. No caso específico do mundo árabe, porém, e muito devido ao fato de o Islam não condenar a magia e o misticismo (basta pensar nos Sufis e seus dervixes), o coquetel decorrente dessa mistura de devoção religiosa com ignorância primitivista pode ser explosivo. E assim sucedeu no Odeon Palace Hotel.

“Quando as pessoas descobriram que a velha tinha morrido de câncer, elas começaram a perseguir o viúvo, identificando-o como um djinn”, Wael continuou. “O djinn é um espírito ruim e de influência nociva, não por acaso uma pessoa pertencente a outra religião. Como o velho era cristão copta e sua mulher morrera daquela doença terrível, ele certamente estava possuído por um espírito do mal, era o que todos acreditavam. Daí, certo dia, o velho saiu e ficou uma semana fora, talvez visitando parentes no oásis de Siwa, voltando durante a noite sem que ninguém o visse entrar. Depois disso, com o passar dos meses, ele não foi mais visto, apesar de todos saberem que estava em seu apartamento. Foi então que os bichos começaram a desaparecer das escadarias do Odeon. Primeiro foram animais menores que sumiram, uma gaiola de pombos foi arrebentada e poucas aves sobreviventes foram novamente encontradas pelos vãos do prédio, totalmente apavoradas. Após alguns dias, acharam marcas de sangue no patamar do primeiro andar e um pato e um ganso sumiram de seus cercados. Nesse meio tempo os moradores começaram a distribuir talismãs pelo prédio inteiro, dependurando olhos de Hórus de vidro em todas as portas. Chegaram até mesmo a colocar um enorme diwan, uma Mão-de-Fátima de cobre, aqui no front desk do hotel. E então, na primeira lua cheia após as mortes começarem a acontecer, um aterrorizante uivo se fez ouvir pelas escadarias do Odeon, ribombando nas paredes e ecoando do primeiro ao último andar, e uma cabra foi encontrada parcialmente devorada num desvão do segundo piso. No dia seguinte pela manhã, os homens do prédio se reuniram e concluíram que o responsável pela desaparição dos bichos só podia ser o velho djinn do sexto andar. Eles então decidiram lacrar sua porta, pregando tábuas e assim impedindo que ele novamente saísse de seu apartamento”, disse Wael. Ele suspendeu um pouco a narrativa, aproveitando para apreciar os efeitos causados por sua história em minha fisionomia pasma e ver que suas palavras haviam engolido completamente as minhas.

“Quinze dias após terem trancado o velho copta e intrigados com os uivos e ganidos que continuaram ressoando pelo prédio, os homens do Odeon resolveram abrir a porta para ver o que havia acontecido”, Wael disse, “e nem consigo imaginar seu espanto com o que encontraram no apartamento. No centro da sala, quase estático e com seu vasto pelame vibrando devagar com a respiração, estava um imenso chacal do deserto deitado sobre o ninho de ossos que semanas atrás tinham pertencido ao velho copta.”

Entregando minhas chaves e me desejando bons sonhos, Wael despediu-se de mim com um olhar de satisfação. Entrei no elevador e, enquanto os antigos mecanismos que inexplicavelmente ainda o mantinham funcionando me içavam ao sétimo andar, eu subia, elevado por uivos e toda sorte de sons animais vindos das escadarias do Odeon Palace Hotel e de desertos muito mais longínquos e selvagens.

Monday, June 11, 2007

EM KHAN AL-KHALILI

Nas imediações do souq medieval de Khan Al-Khalili, acompanhado da espiã francesa Egípcia do Crato, alguns dias depois de ser sequestrado por ela para viagens de trem até Alexandria e Luxor (aguarde os próximos e finais capítulos de “A maldição do Cosmopolitan Hotel”) e um pouco antes de vir a Paris, onde estou desde o dia 10 de junho em intenso processo de recivilização.

NO CAFÉ EL HORREIYA

Nesta foto, o cineasta, fotógrafo e ex-animador de auditório (lembram da “Fábrica do Som”?) Tadeu Jungle tenta (em vão) apostar corrida de Stellas com seu entrevistado. Gravamos o papo no Café El Horreiya, na Midan Al Falaki, um bar fundado em 1908 frequentado pela malandragem do centro da cidade. O El Horreiya demarca também o início da parte islâmica do Cairo (definição imprecisa, pois – com exceção da parte velha da cidade, de origem romana e copta – a cidade é inteiramente muçulmana), sendo o último bastião da boemia antes de penetrar terrenos do Islam, onde achar uma bira torna-se missão impossível até mesmo para o mais incansável apreciador dos poderes revigorantes desse notável refrigerante etílico.

Saturday, June 9, 2007

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL VII

Enquanto a Egípcia do Crato aguçava sua beleza num banho de espuma, eu tergiversava olhando o mar. Alexandria estabeleceu sua aura de balneário decadentista ainda no século XIX, quando o Paxá Muhammad Ali (o criador do Egito moderno) transformou a cidade no principal porto comercial do país e a renovou, criando prédios modernos e abrindo-a para o capital estrangeiro. Foi nesse período de dominação otomana que se iniciou a poderosa influência britânica no Egito, que se intensificaria com a inauguração do Canal de Suez em 1869 pelo Khedive Ismail, filho de Muhammad Ali.

A grana européia ergueu coisas belíssimas no Egito. Edifícios, colunatas, arcadas, belvederes, boulevards, fontes, avenidas e praças lindíssimas, tudo isto espelhava o desejo excêntrico dos milionários de reproduzirem grandes cidades da Europa em pleno Oeste Africano, misturando a arquitetura ocidental com fachadas neo-islâmicas, minaretes turcos e abóbadas mamelucas, fazendo assim do Cairo e de Alexandria cidades únicas no mundo, com seus delírios de idealização oriental arquitetônica. A festa acabou em 1952, quando Gamal Abdel Nasser deu o golpe de estado, fundando a República Árabe do Egito e despachando o Rei Farouk (que saiu pela culatra aqui mesmo de Alexandria, zarpando do Palácio Ras El Tin para a Itália, onde morreria dez anos depois, engasgado com comida num restaurante – ô triste fim da pantomima monárquica!) e, por consequência, mandando os britânicos embora.

É nesse ponto que a Egípcia do Crato me interrompe, saindo do banheiro. Eu gostaria de descrevê-la com um vestido diáfano decotado, mas não estaria sendo correto com a realidade islâmica de Alexandria e do resto do Egito. Se uma mulher sair em público aqui mostrando, hum, vejamos, os ombros, ela será ofendida desde o primeiro passo que der na rua até o último, isto se não acontecer coisa pior. A Egípcia do Crato, porém, mantinha seu garbo de espiã mesmo em seus jeans. E eu sempre poderia admirar seu rosto e suas mãos. Foi fazendo isto, debaixo dos espetaculares lustres do amplo salão do Café Trianon, que comecei a desenvolver algumas teorias.

A república árabe de Nasser foi responsável, entre outras coisas, pela legítima nacionalização do Canal de Suez (ai!), o que gerou imediata retaliação dos países que iam e vinham pra lá e pra cá, transportando suas mercadorias sem taxação alguma. Nasser também desapropriou todos os prédios, escritórios e casas de europeus que caíram fora após a revolução. Essa foi praticamente uma condenação à morte de toda a arquitetura fin-de-siècle, abandonada ao descaso público. Não tenho dados específicos sobre Alexandria, onde o fenômeno consequente não difere do ocorrido no Cairo, cujos dados fornecidos pela prefeitura em 2002 permitem entender o grau da encrenca: 60% da população do Cairo vive clandestinamente em prédios ilegais e sem níveis adequados de segurança; 25% dos prédios estão à beira do colapso, enquanto que 40% não atendem condições higiênicas para habitação e 850.000 estão condenados. Aqui no Egito um número impressionante de pessoas morre soterrada pela própria(?) casa ou achatada nas ruas por sacadas que despencam sobre sua cabeça. É por essas e outras que convém no Egito caminhar sempre olhando para o alto. E não espere por um piano caindo do nono andar, mas o nono andar inteiro, incluindo o piano.

Toda essa doideira me faz pensar no Egito como um paradoxo ululante, pois enquanto templos e monumentos de 3.000 anos AC continuam intactos, em muito breve as recordações do século XIX e XX não passarão de ruínas. Idéia ainda mais trágica é a de que não serão encontradas múmias de faraós célebres debaixo delas, mas apenas os ossos anônimos dos miseráveis do presente.

Passeando com a Egípcia do Crato entre as belezas arquitetônicas da belle époque que ainda subsistem em meio à quase totalidade de prédios arruinados de Alexandria, perfazíamos o caminho literário praticado por E. M. Forster, Lawrence Durrell e o poeta grego Konstantinos Kavafis. Enquanto Forster e Durrell se esconderam por aqui apenas durante a Segunda Guerra Mundial e escreveram suas obras descrevendo o lugar somente anos depois, Cavafis passou toda a vida em Alex. Filho de uma família com posses que se viu de repente na merda, ele trabalhou a vida toda num escritório sobre o Café Trianon, em cujas mesas escrevia seus magníficos poemas permeados de reminiscências clássicas greco-romanas e homoerotismo (traduzidos aí no Brasil pelo grande José Paulo Paes). O apartamento de segundo andar num prédio baixo onde o poeta viveu seus últimos 25 anos, transformado em pequeno museu, é um sonho de qualquer escritor. Numa pequena viela calma e arborizada da Sharia Nabi-Daniel, a casa de Kavafis fica a poucos quarteirões do Café Pastroudis (fechado recentemente, vejam só que desgraça), sendo que num extremo do beco fica uma igreja ortodoxa grega e no outro, o Hospital Grego. “Abrigos para o espírito e para o corpo sob idêntico alcance”, gracejou o poeta, alegando que ali era o lugar perfeito para ele viver.

Depois de zanzar pelo Anfiteatro Romano em Kom-al-Dikka e darmos com a cara na porta do Museu Greco-Romano (“fechado para reformas”, disse o guarda; aqui é baixa temporada e os sítios históricos melhor administrados estão todos meio que em obras), retornamos à orla, até o recomendabilíssimo restaurante Fish Market, onde eu necessitava tirar a barriga da miséria de carne e com peixe, claro (sou cuiabano, afinal, e o apelido dos cuiabanos – não sei se vocês sabem – é “papa-peixe”). Uma sensacional vista das proximidades do porto e do Forte Qaitbey deram a mim e à Egípcia do Crato o melhor final de tarde da Terra. O restaurante é genial: você seleciona peixes, camarões, frutos do mar fresquinhos e escolhe o modo de preparo. Depois de prontos, os pratos são servidos com saladas e mezzes, e tudo a um preço baixinho, baixinho. Paz na terra aos homens de bom gosto e apetite. Daí o sol se afogou no Mediterrâneo sem salva-vidas que o resgatasse (ao menos para aquele dia) e nós rumamos para alguns drinques mais no bar Cape D’Or de Alexandria, muito mais charmoso, com seu balcão de cobre e de mármore, do que seu homônimo no Cairo. Depois disso, o mergulho alvo nos lençóis do Hotel Union e o som das ondas fornecendo o ritmo ideal para o amor e para o fim irrevogável das maldições.

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL VI

A Egípcia do Crato vencia as pedras pontiagudas da pirâmide de Userkaf com a sinuosidade de uma cobra, esticando suas longilíneas pernas de rocha a rocha e ladeira a baixo, até aterrissar na areia do Grande Deserto Ocidental. “Aterrissar” era precisamente o termo a ser usado, pois a espiã francesa era mesmo um estupendo caça-a-jato.

“O que você anda tramando, Egípcia do Crato?”, eu lhe disse, envolvendo sua cinturinha 38. Ela então virou para mim seu rosto esculpido sobre maxilares de suçuarana. Os olhos dissimulados de agente secreta internacional eu podia apenas imaginá-los, pois se escondiam detrás de Ray-Bans prateados. Ela também tinha sua cabeça nobre e bela emoldurada por um hegab com fios de ouro acesos pelo sol que me fizeram esquecer por um momento as sevícias e trapaças de que era capaz.

“Passeando, Terron. Me aposentei, ao menos temporariamente”, ela sussurrou, com seu sotaque francês de Barbalha. “E eu poderia até dizer que você caiu das nuvens, se aqui tivesse alguma nuvem. Ando carente de companhia masculina perspicaz, nesta terra de mouros.”

Eu, perspicaz? Minha paranóia apitou feito o Arnaldo César Coelho: a Egípcia do Crato estaria mancomunada com os leitores do TodoProsa, a revista Veja e Reinaldo Aze(ve)do? Eu não conseguia imaginá-la, com todo aquele charme dilapidado nas ruas de Paris e de Juazeiro, como mais uma mirisolette grotesca. Não, eu não queria acreditar nessa possibilidade.

“É mesmo? Tamos aí. O que tá pensando fazer?”, falei.

“Reservei uma suíte com vista para o Mediterrâneo, em Alexandria. O Turbini sai hoje, às 9h30. Que tal vir comigo?”, ela disse, e quando esse convite suspeito caiu de seu lábio inferior espesso e convidativo como um bife tenro, não tive escapatória. E muito menos gostaria de ter.

“O que você acha? Tou com motorista me esperando. É só passar no hotel e pegar a mochila. Quer carona?”

“E o que você acha? Eu sabia que adivinharia todos os meus desejos, Joquinha”, ela falou, sacando o Ray-Ban e piscando para mim. Seus olhos castanhos prometiam a mais irrestrita revogação de qualquer praga.

*

O Turbini é o melhor entre os trens que percorrem o trecho Cairo-Alexandria, com poltronas largas e limpinhas que fazem a gente esquecer por 2h40 que está no Egito. Tudo funciona, o trem anda e ninguém enche meu saco, como antes havia enchido o tiozinho das bagagens na Estação Central da Midan Ramsés, implorando por baqshish após ter me dado informações que não solicitei. A estação também é muito bonita, lembrando algumas estações de trens brasileiras, e sou acometido por irreparáveis crises nostálgicas toda vez que sento no banco de uma delas e fico observando as pessoas chegando e partindo. Deve ser porque sou neto de ferroviário (meu avô espanhol, Juan José Terron Fernández, era maquinista da FEPASA em Marília, interior de São Paulo) e também órfão de nosso sistema de trens para passageiros, cuja extinção considero uma prova (apenas uma) da total estupidez dos administradores públicos brasileiros. Anfã: os trens de passageiros do Brasil partiram e nunca mais voltaram às estações.

Eu lamentava tais cousas e apreciava as palmeiras correndo junto à paisagem e os carros mandando bala na Desert Road, que segue paralela aos trilhos até Al-eksandEria (é como os árabes daqui pronunciam o nome dessa cidade, berço do cosmopolitismo do país). Aproveitava também para tirar umas casquinhas da Egípcia do Crato, acariciando seu cotovelo lânguido com meu pobre cotovelo lanhado de escritor fedido e mal pago. A idéia consistia em: se aquele cotovelinho alimentado à base de Nivea curtisse a aparência boêmia e abalconada do meu, eu estaria feito.

Afinal, à nossa frente estava Alexandria, cidade às margens do Mediterrâneo fundada por Alexandre, o Grande (em 332 DC) para rivalizar com Roma. Era certo que nosso destino nos prometia um amor grandioso, ao contrário do histórico de maldições da cidade, palco da tragédia pré-shakesperiana de Cleópatra e Marco Antonio. Eu, na realidade, não me preocupava apenas em ver o Pilar de Pompeu ou o Anfiteatro Romano em Kom-al-Dikka (o único em todo o Egito, descoberto em 1965 quando cavavam as fundações para a construção de um edifício). Apesar de saber que ir para Alex em busca do clima presente no “Quarteto de Alexandria” de Lawrence Durrell ser a mesma coisa que ir à Londres na tentativa de ver Mary Poppins no céu, era isto mesmo que eu queria, o cheirinho deixado por aquela tradição literário-decadentista.

Ao chegar na estação, pegamos um táxi e seguimos para a orla. No caminho, a imponência intacta do Cecil Hotel, cenário do “Quarteto” de Durrell e QG do serviço secreto britânico nos tempos doirados, o que incendiou os brios da Egípcia do Crato: “Pfuá!”, ela assoprou com desprezo seu biquinho francês. O lugar também ficou célebre por hospedar Somerset Maugham, Noel Coward e outros bichos. Para minha surpresa e a de meu ego, porém, o táxi seguiu em frente mais 50 metros, brecando diante do Hotel Union, constelações inteiras abaixo de seu vizinho Cecil. “A coisa tá feia até mesmo para espiãs francesas, meu caro”, disse a Egípcia do Crato, com seu sorriso lúbrico já mordendo o que minha imaginação ainda alimentava. No quarto, a surpresa: o hotel estava completamente vazio e nos deram uma suíte com sacada, cuja vista permitia ver a baía de ponta a ponta, do Forte Qaitbey (construído no local onde ficava o célebre Farol de Alexandria) à Bibliotheca Alexandrina (não a antiga, a nova, inaugurada em 2002). E a cama era de casal.

Dependurado qual um escritor do século XX naquele balcão iluminado pelo sol e observando de modo incansável a orla mediterrânea de Alexandria (que já foi injustamente chamada de uma “Cannes com acne”), eu me sentia nada mais nada menos do que o máximo.

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Tuesday, June 5, 2007

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL V

Andar de camelo nas dunas do Saara pode ser uma experiência tão marcante quanto um grande caso de amor: só dói quando acaba.

A simpatia que esses bichos irradiam, entretanto, foi plenamente confirmada. O meu camelo (cujo nome alguém me disse mas eu não entendi; adotei então o nome de Marcelo) parecia querer me revelar algo muito importante, pois mastigava e babava o tempo todo, ameaçando volta e meia dizer alguma coisa. O que seria? Uma história de amor entre camelos? Ou estaria querendo me fornecer o paradeiro da Egípcia do Crato, a terrível espiã francesa e notória especialista no sumiço de narizes de Esfinges e da estátua de 90 toneladas de Ramsés II da Midan Ramsés? Seria Marcelo, o camelo, uma mirisolette disfarçada? Minha paranóia deu o breque: e se tudo aquilo tudo fosse uma tramóia de Hosny El Ashmony & as mirisolettes para terroristicamente detonar com minha historinha de amor? Acabei ficando na dúvida e a única certeza que tive foi a de que camelos vivem apenas 20 anos, do mesmo jeitinho que o pobre Tuthankamon ou Álvares de Azevedo. Pobres das almas românticas dos camelos, faraós e poetas das Arcadas, esses defuntos precoces e jovens permanentes!

Depois de duas horas no lombo do bicho e de ver as pirâmides de todos os ângulos possíveis e impossíveis, eis que surge a Esfinge. Da Esfinge a melhor coisa que disseram foi que “vê-la é igual conhecer uma personalidade da TV em carne e osso” – rochas e areia, neste caso – “ela é sempre menor do que a imaginamos.” Das pirâmides, a melhor coisa foi dita pelo cara que alugava camelos: “Very big, very old.”

Eu pensava em pedir à Esfinge que ela me contasse uma história de amor, quando minha visão foi tapada por um milhão de sombrinhas multicoloridas das turistas japonesas despejadas pelos ônibus. Acabei desistindo de tudo e de lá retornamos ao ponto de partida no favelão de Giza, com a garotada correndo atrás de meu camelo e gritando “Cowboy! Cowboy!”, na expectativa de que eu abrisse a torneirinha de dólares. Tadinhos. Morreram de sede ali: nada de verdinhas em pleno deserto.

Depois de apear do Marcelo (descer de um camelo pode ser perigoso que só: basta se distrair na hora do movimento de montanha-russa que ele faz quando ajoelha as patas dianteiras e babau: sua dinastia faraônica terminará em você mesmo), me aguardava Hosny El Ashmony, o taxista trapaceiro & mirisolette militante, provavelmente com mil artimanhas calculadas para me empobrecer ainda mais. De lá seguimos para Mênfis, onde eu ansioso esperava que arqueologistas ingleses ou franceses (mais provavelmente americanos) tivessem descoberto nos últimos tempos a tumba secretíssima de um faraó desconhecido da última dinastia chamado Elvis I (imaginem a bela máscara mortuária com seu topete proeminente), mas que nada, Mênfis é uma decepção completa. Só não foi tão grande assim pelo fato de encontrar por lá a estátua de 90 toneladas de Ramsés II, aquela que ficou por 50 anos assistindo o engarrafamento do centro do Cairo como se fosse um guardinha de trânsito super-nutrido. Quer dizer que a gigantesca estátua não havia sido roubada pela Egípcia do Crato? Teria a espevitada espiã e femme fatale de carteirinha se regenerado? Era o que eu precisava descobrir com urgência.

Derrotado por minha renitente sovinice, Hosny El Ashmony desistiu das trapaças e me contou da dificuldade de pagar escola particular para suas duas filhas pequenas (“3.000 Libras Egípcias por ano, uma dureza. Mas fazer o quê? O ensino público aqui é uma droga”). Hosny desistiu também, nesse momento de intercâmbio de nossas experiências paternas internacionais, de adotar a amedrontadora voz de narrador de “Twilight Zone” que utilizara até então para falar dos sítios arqueológicos que visitávamos. Hosny El Ashmony afinal provou ser um sujeito legal.

A última vez que Hosny adotou sua voz de narrador de filme de horror foi na entrada de Saqqara (“S-a-q-q-a-r-a-a-a-a-a”, Hosny disse de maneira soturna, repetindo os “a” como se fosse o som de uma porta de tumba rangendo ao ser aberta). A 30km ao sul do Cairo, essa foi a parte mais deliciosa do passeio. Em pleno Deserto Ocidental e contornado pela área de cultivo do Vale do Nilo, com 7km de extensão e pouco visitada pelos turistas, Saqqara passou aquela sensação de isolamento aguardada desde que pisei no chão empoeirado do Aeroporto Internacional do Cairo. O lugar é formidável desde a entrada, o Serapeum, uma sequência de colunas em forma de uraeus, aquela cobra de cabeça larga que representa a deusa Wadjet, protetora dos faraós. Saqqara foi o principal crematório do Egito Antigo por 3500 anos, além de reunir um complexo sistema de necrópoles. Ou seja, eu estava no meio de um cemitério gigante, pronto para que a maldição dos séculos caísse sobre minha cabeça calva e chamuscada pelo sol.

Mas que nada: caminhar a esmo pelo areião em silêncio completo, a não ser pelo som do vento, foi uma bênção, assim como ver ao longe o círculo verde do horizonte de plantações às margens do Nilo e de seus afluentes. E daí conhecer a magnífica Pirâmide de Degraus do faraó Zoser, o mais antigo monumento de pedras feito pelo homem (2650 AC). É algo que não acontece toda segunda-feira, convenhamos. Depois disso, bater perna pelas tumbas e outras pirâmides e ficar olhando os beduínos cochilando à sombra dos camelos e os vira-latas, únicos habitantes das pirâmides nos dias de hoje.

Foi então, no zênite do final da manhã que eu vi, qual miragem flamejante no topo da pirâmide de Userkaf, a silhueta sexy da Egípcia do Crato em pose de desafio. Desta vez ela não me escaparia.

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INTERLÚDIO: A ESFINGE

“Me conta uma história de amor, Esfinge?”
“Decifra-me ou te devoro.”
“Que é isso, o título da história?”
“Eu sou uma esfinge, cara. Eu proponho enigmas. Procure histórias de amor em outro departamento.”
“E o amor não é o mais indecifrável enigma jamais inventado, Esfinge?”
“Aí você me pegou.”
“Então. Conta uma história de amor aí, vai.”
“Hum... História de amor?”
“É. Bem bonita. Daquelas que fazem a gente chorar.”
“Mela-cueca?”
“É. Ando meio piegas. Deve ser a solidão do Cairo.”
“Solidão... Você não faz a menor idéia do que seja a solidão.”
“Que é isso, um enigma?”
“Decifra-me ou te devoro.”
“Pára com isso. Eu sei bem o que é a solidão. Não essa sua solidão cercada de areia e de vento, mas a solidão da metrópole. Sabia que a gente pode se sentir bastante sozinho no meio de 20 milhões de pessoas que não falam a nossa língua, Esfinge?”
“Agora você que me vem com enigmas.”
“O que aconteceu com seu nariz, Esfinge?”
“Ah, não, essa sim é que é uma história triste.”
“Ah, vai. Contaê.”
“Bem, como você deve saber, até o começo do século XIX o meu corpo estava inteiramente enterrado. Só aparecia a cabeça.”
“Não sabia, não.”
“Pois é. Foi só quando Napoleão invadiu o Egito, em 1798, que chegaram os especialistas que iniciaram os estudos sobre o Egito Antigo. Foram esses caras que me desencavaram.”
“Ah, tá. Então a história de amor que você vai me contar é a dos franceses pela Egiptologia.”
“Mais ou menos. Como você sabe, em história de amor sempre rola porrada.”
“E daí?”
“E daí que, além dos cientistas, Napoleão trouxe soldados, que gostavam de praticar tiro ao alvo aqui no meu nariz.”
“Tá brincando?”
“Por acaso eu estou sorrindo?”
“Não.”
“E a Mona Lisa, lá no Louvre, está sorrindo?”
“É outro enigma?”
“Decifra-me ou te devoro.”
“Deixa disso, Esfinge. Que mania.”
“Como você pode ver, meus dentes ainda não caíram.”
"E agora, você está sorrindo?"
"Claro que não. E isto também não é uma gargalhada."

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL IV

Eu perscrutava os olhos dourados de Tuthankamon em busca de respostas ou ao menos de uma piscadela de compreensão que fosse.

Naquele momento, um pouco depois do bando de turistas japoneses nos deixar a sós, pude então ouvir o que parecia ser um sussurro trazido pelo vento do deserto. Ou seriam fiapos de uma voz esgarçada cuspida pelo passado distante?

“Eu não cheguei a amar”, a voz rouca dizia, “Não tive tempo.”

Olhei para todos os lados e confirmei que não havia mais ninguém na sala, além de mim mesmo e de Tuthankamon, representado por sua jovial máscara mortuária de ouro maciço.

“Morri muito cedo, amigo”, Tuthankamon continuou, “não deu nem ao menos para me apaixonar. E você sabe como são os adolescentes: estão interessados apenas em carros e em velocidade.”

“Carros e velocidade?”, repeti, meio incrédulo e sentindo-me um bocado solitário ali, conversando com aquela máscara vazia que bem podia ser o capacete de um extravagante piloto egípcio de Fórmula 1.

“Exato. No Egito dos faraós não era muito diferente dos dias de hoje. Eu me amarrava em pilotar uma charrete a 100km por hora na Avenida das Esfinges, lá em Luxor. Certo dia, fiz uma cagada na direção. A charrete capotou e machuquei a perna. Daí a ferida infeccionou e pronto: eis-me aqui papeando com o amigo escriba, 3 mil anos depois.”

“Que chato. Na plaquinha aí embaixo diz que você tinha só 19 anos. Sinto muito por isso, Thutinha.”

“Tá tudo bem. Eu gosto daqui. Volta e meia aparecem umas minas gostosas usando uns vestidos curtinhos. Dá pra ver bastante coisa deste ângulo. Pena que não vou poder te ajudar com a história de amor. Ei, por que você não pede ajuda pra Esfinge, lá em Giza?”

“Pra Esfinge?”

“Isso aí. A Esfinge sempre tem boas histórias pra contar”, falou Tuthankamon. “Agora peço desculpas pro amigo, vou tirar um cochilo. Antes que apareçam mais japoneses, se é que me entende.”

“Entendo, claro. Prazerzão e boa soneca.”

“Valeu. E boa sorte com a sua história”, disse Thutinha, recolhendo-se ao seu mutismo de sarcófago.

Fiquei em silêncio por algum tempo também, apenas ouvindo o zumbido das moscas rodeando as múmias reais do Egyptian Museum. Eu precisava urgentemente maneirar na mistura de Tramal 50 com cerveja.

*

Naquela mesma noite liguei para Hosny El Ashmony, um taxista recomendado pelo hotel, e, no comecinho da manhã seguinte, rumávamos ao Platô de Giza para ver as pirâmides e a Esfinge.

Faço um pit-stop imaginário nesse passeio para falar de certa aflição que tem me acometido: o Egito é o inquestionável campeão mundial do clichê turístico, como vocês sabem, e o sem número de atrações existentes por aqui (só na cidade do Cairo são mais de 500) faz com que a gente tropece em sítios arqueológicos em todo e qualquer lugar que pise. Como nunca antes estive num lugar onde o peso da História fosse tão onipresente, confesso minha cabreirice inicial e já superada em sair de meu papel costumeiro de turista acidental (“Viajar, perder países”, escreveu Pessoa) e programar alguns passeios mais tradicionais.

Ocorre que o livro que estou planejando não tem nada ou tem muito pouco a ver com as encarnações passadas da cidade do Cairo (se é que é mesmo possível distinguir um Cairo exclusivamente contemporâneo), daí o conflito entre minha necessidade de conhecer melhor as nuances atuais da metrópole e conhecer outras atrações como, por exemplo, a da Grande Pirâmide de Quéops, única sobrevivente das Sete Maravilhas do Mundo Antigo.

Como vocês já podem imaginar, porém, o inigualável poder magnético das pirâmides destruiu minhas dúvidas por completo.

*

As pirâmides serviram também para destruir com algumas idéias pré-concebidas que eu tinha.

Hosny El Ashmony pilotava seu possante Daewoo pela Pyramid Road, uma avenida cercada de favelas nos subúrbios da cidade do Cairo, quando, à minha direita e detrás dos postes de luz e dos barracos empilhados no horizonte, surgiram as pirâmides de Quéfren, Miquerinos e Quéops. Em questão de segundos aquela imagem de cartão postal das pirâmides no meio do deserto que existia em minha cabeça implodiu completamente, como se fosse a de um prédio construído pelo Sérgio Nahas.

A região onde as pirâmides ficam está dentro da cidade do Cairo há algumas décadas. Para se fazer idéia, os primeiros restaurantes com vista para elas surgiram já nos anos 1940, e as fotos de cartão postal que ficaram registradas no imaginário mundial pertencem à década de 1920, auge das descobertas da egiptologia e início do boom turístico no Egito. Foi naquele período que aristocratas e nobres europeus viajavam pra cá, trazendo seus carrões em transatlânticos através do Mediterrâneo e cravando na nossa memória a idéia de sofisticação ligada ao Egito. Basta nos dias de hoje, porém, olhar para a breguice inigualável do restaurante Christo (que oferece, além da privilegiada vista para as pirâmides e para o favelão, peixe frito e shows de dança do ventre), para ter certeza de que os bons tempos não voltam mais.

E olhe que a situação parece ter melhorado muito desde 2004, quando o Ministério do Turismo decidiu isolar as pirâmides da população do platô de Giza com uma muralha. Assim, os camelôs, “guias” e donos de camelos que empesteavam o local, assombrando os turistas, foram obrigados a ficar do lado de fora.

Enquanto eu remoía essas considerações, meu piloto Hosny El Ashmony tramava contra meu bolso ao celular, provavelmente armando com seus comparsas alguma maneira de me levar à falência. Hosny, porém, não sabia patavinas (assim como todos os malandros do Egito) a respeito do conteúdo do guia “Lonely Planet”, que eu tinha lido de cabo a rabo mais de uma vez. Eu estava preparado. Bem, ao menos assim pensava. Foi então que Hosny El Ashmony, o mala sem alça, perguntou se eu queria conhecer as pirâmides “pelo lado de fora ou pelo lado de dentro”. Epa! Então quer dizer que o “Lonely Planet” não dava todas as dicas? Seria uma pegadinha? Pensei um pouco nas aflitivas descrições do interior da pirâmide de Quéops feitas por viajantes claustrofóbicos e respondi “pelo lado de fora”.

Em poucos minutos e após árdua negociação nos arredores das pirâmides, eu rebolava sobre a corcova de um camelo, atravessando o favelão com garotinhos correndo atrás de mim e berrando “Cowboy! Cowboy!” Alguns minutos e estávamos no areião do deserto. Entramos, pelo que entendi, por uma porta “alternativa” dos fundos, após Abdul, o guia, molhar a mão do segurança. Depois de um bom tempo e de algumas dunas escaladas, estávamos afinal distantes do burburinho dos malacos e dos turistas e ouvindo só o vento. Foi nesse instante que Abdul se aproximou de mim galopando e quebrou o encanto da coisa toda com uma brincadeirinha para descontrair: “Welcome to Alaska!”, ele disse.

Eram 10h da manhã e o sol e o meu humor não estavam para piadas prontas.

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