amores expresos, blog do Joca

Monday, May 14, 2007

OH, VIDA, OH AL-AZHAR*

Em Amsterdam chovia e fazia muito frio.

E ventava ainda por cima. Eu estava preparado para o frio, mas não para a chuva torrencial que despencava sobre aquela cidadezinha de bonecas. Não seriam pragas porém, àquela altura longínquas, que me impediriam de desvendar os becos e bravamente vencer as pontezinhas em arco de Amsterdam ou as ubíquas hordas de japinhas.

Aterrissei às 11h da manhã no aeroporto de Schiphol após 11h30 de vôo tranquilo, atravessei o gigantesco shopping center que é aquele lugar e tomei o trem para a Centraal station. Eu ainda não sabia do pé d’água do lado de fora e tinha diante de mim quase 10 horas para afastar a ziquizira.

E em Amsterdam chovia e fazia muito frio.

Depois de ensopar meu blazer e as barras das calças e após alguma relutância, comprei um guarda-chuva de 4 euros. A relutância se devia ao fato de que ele não seria muito útil em meu destino final, afinal não costuma chover muito no Saara ou no Sinai. O meu destino naquele momento, entretanto, não era o Saara ou muito menos ver in loco putas dançando nas vitrines (embora as tenha visto e quase chorado piedosamente por sua feiúra e tristeza rebolante), devorar um space cake ou queimar um marroquino golden ou fazer essas coisas que os turistas normalmente fazem em Amsterdam. O meu destino ficava bem entre a Prinsengracht e a Keizersgracht, no meio da Kerkstraat e se chama Lambiek Comics Shop, a livraria especializada em quadrinhos mais antiga do Velho Mundo, desde 1968 fazendo circular o que há de mais interessante no assunto.

E quando digo que eles têm de tudo por lá, pode crer que é TUDO, até mesmo as edições de Lourenço Mutarelli ou de Fábio Moon & Gabriel Bá publicadas pela Devir. Por falar nos gêmeos, a edição de “De:Tales” da Dark Horse era exibida com destaque, certamente devido à sua recente indicação ao Eisner Awards. E dá-lhe babar na estante dedicada às sensacionais e incompreensíveis edições da Oog & Blik, a editora criada pelo quadrinista holandês Jooste Swarte para publicar na Holanda tudo o que Drawn & Quarterly e Fantagraphics publicam no Canadá e EUA, mais uma penca de coisas saídas da ativa produção local de quadrinhos, como as graphic novels expressionistas de Luc De Groot.

Além de ser uma livraria com acervo tão grande e variado que exigiria mais horas do que eu dispunha para explorá-la, a Lambiek também é uma galeria de arte que comercializa originais e pôsteres em serigrafia numerados e assinados pelos maiores nomes dos quadrinhos atuais. As paredes da loja (que é dividida em duas alas, uma para a galeria e outra para a venda de álbuns) são cobertas por desenhos originais de Robert Crumb e outros luminares surgidos no underground da contra-cultura, mas hoje em dia centra fogo na divulgação dos novos mestres do comics alternativo, como Chris Ware, Daniel Clowes, Charles Burns, Gary Panter e Adrian Tomine. Uma serigrafia de Burns por 130 euros quase me fez cometer uma loucura no cartão de crédito. Respirei fundo, bisbilhotei pelas prateleiras de HQs alemãs, finlandesas e o escambau e terminei na estante da D&Q em busca de algo que conseguisse ler. Aquisições: “Monologues for the coming plague”, de Anders Nielsen, “Louis Riel”, de Chester Brown, “Ligne fragile”, de Lorenzo Mattotti e “King-Cat Classix”, antologia hardcover reunindo os 50 primeiros mini-gibis auto-publicados pelo norte-americano John Porcellino – uma jóia de simplicidade narrativa.

Depois dessa gloriosa experiência (que me fez pensar que as maldições haviam errado a mira), me enfurnei num pub para algumas Heinekens. E então o retorno à chuva e ao aeroporto de Schiphol. No trem, “esqueci” o guarda-chuva para que não aumentasse ainda mais minha bagagem de mão (os livros são pesados). Um senhor turco veio atrás de mim, perguntando se o guarda-chuva não era meu. Eu lhe disse que era sim, mas ele podia levá-lo, pois eu não precisaria de um guarda-chuva no deserto. O sujeito fez uma cara de cada-um-com-sua-loucura e deu no pé.

Depois disso, algumas horas mais de atraso em Schiphol, além de outras Heinekens. Na hora de embarcar, uma chateação: na rigorosa revista da bagagem de mão, descobri -- para meu terror -- que recipientes contendo líquidos não podiam ultrapassar 250 ml. A funcionária árabe sorriu pra mim, e depois jogou meu tubo de 255 ml de esterilizador de lentes de contato no lixo. “Sorry”, ela disse. No mesmo instante iluminou-se com néon em minha cabeça o parágrafo do “Lonely Planet” dizendo que era praticamente impossível achar produtos para lentes de contato no Egito. A solução foi argumentar, pedir. Implorar. Chamaram o chefe, um holandês baixinho. Quando, ao retirar as minhas lentes, eu disse que aquilo seria um grande problema para mim pois eu era quase cego, o sujeito num passe de mágica devolveu o produto à minha mochila. Também existe um “jeitinho” holandês e eu não sabia.

E afinal, às 3h30 da manhã e 48 horas depois de passar a chave na porta de casa, eu desembarcava no empoeirado aeroporto internacional do Cairo.

* Al-Azhar é uma das principais mesquitas do bairro islâmico do Cairo.