amores expresos, blog do Joca

Saturday, May 19, 2007

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL I

O Cosmopolitan é um hotel fundado em 1928 com endereço no centro do Cairo, região que viu seu auge na virada do século XIX para o século XX. Concentrado em torno à Midan Talaat Harb, esse pedaço da cidade está cheio de prédios art nouveau que nem de longe lembram os postais do tempo em que a Sharia Qasr-El-Nil era comandada pelo ainda imponente edifício da Bolsa de Valores, atualmente desativado.

Escondido numa viela e alheio ao rebuliço dos vendedores nas lojas, o Cosmopolitan Hotel está adormecido, sonhando com o passado glorioso. Seu frontão é formidável, com sacadas dando para um tranquilo passeio do centro onde vigora um ahwa (os cafés populares egípcios, frequentados essencialmente por homens que neles matam o tempo bebendo chás e fumando shishas, como é chamado o narguilé aqui) e dominado pela impressionante escadaria culminando em uma porta giratória daquelas que podem nos transportar no tempo: basta perder-se circularmente nelas e terminamos, meio tontos, dando de frente com a Belle Époque.

Sob o gigantesco lustre com milhares de lâmpadas acesas, não consigo ter nem uma mísera idéia a respeito do que pode ter dado errado na trajetória do Cosmopolitan. Observo o remendo grosseiro no uniforme puído do sujeito de noventa anos que carrega a minha bagagem no velhíssimo elevador com estrutura de ferro escuro e vidros decorados por iluminuras art nouveau. Noto quando sorri seus dentes apodrecidos, seus dedos imundos dos pés enfiados nas sandálias gastas. Vejo a palma de sua mão estendida em minha direção, implorando por bakshish. Enquanto saco algumas piastras de meu bolso furado, me antecipo (pois neste post estou apenas chegando ao Cairo e ao hotel e não tenho condições de refletir sobre o que ainda não vi) e começo então a refletir.

Uma das peculiaridades do Cairo é o contraste que pode haver entre a realidade externa totalmente degradada das ruas e a realidade interna dos prédios igualmente arruinados, que às vezes escondem ambientes tão luxuosos a ponto de nos desconcertar. A paisagem urbana desta cidade de 16 milhões de habitantes é assolada pelo desemprego, pela miséria e pelo caos e parece ter sido bombardeada anteontem e sempre. Tudo é coberto por um ubíquo pó cinza, até mesmo a vegetação, e às vezes bate uma ventania de areia daquelas de fechar os olhos e se segurar no poste mais próximo. Esgotos abertos nas calçadas cheias de pedintes, restos de comida jogados pelas esquinas, cheiros para todos os olfatos. Você dá dois passos e sente vontade de vomitar com o cheiro de alguma coisa apodrecendo, dá mais dois passos e é tomado pelo odor delicioso de alguma comida sendo preparada. Os perfumes decadentes da maior metrópole africana definitivamente não são para os sensíveis. E, contrastatando com essa algazarra, há os interiores opulentos de alguns lugares.

Um deles é o restaurante Abou-El-Said, no bairro de Zamalek. Enfiado numa rua inundada pelo esgoto na margem leste do rio Nilo, ao lado da Sharia Brazil e detrás de uma gigantesca porta medieval de madeira, o Abou-El-Said parece um palácio oriental, com seus grossos tapetes e móveis de estilo beduíno semi-ocultos pelas luminárias à meia-luz projetando sombras e desenhos por todo o ambiente. Suas poltronas são baixas, assim como as mesas, e os convivas nelas se estendem saboreando shishas, vinhos e cervejas (foi onde provei pela primeira vez a principal cerveja local, Stella, fabricada pela Heineken, e também o lugar em que paguei mais caro por ela, cerca de 20 libras egípcias, ou R$7. O preço normal nos botecos é de 7 libras, mais ou menos R$2,45). Ao fundo, bem baixinho para não incomodar, canções de Omm Kolthun, a maior cantora egípcia de todos os tempos, e outros temas de música árabe. E uma miríade de cheiros no ar, dominado pelo perfume suave de chá de menta exalados pelos shishas. Provo alguns mezzes (aperitivos) para abrir o apetite: babaganush (pasta de berinjela, tahine, ervas e azeite) com pão sírio torradinho (ambos conhecemos bem), mais kofta (conhecida no Brasil como kafta) e kebab (nacos de carne de cordeiro grelhados), além de deliciosos charutos de uva recheados com arroz e lentilha. Depois peço o prato principal, koshari. Típico do Egito, é um macarrão de semolina temperado essencialmente com arroz, grão-de-bico torrado, lentilhas e tomates. Uma delícia vegetariana que pode dobrar até o mais ferrenho dos carnívoros.

E então, após a festa dos sentidos promovida todas as noites pelo Abou-El-Said, retorno à realidade das ruas arrebentadas desta cidade coalhada de gente. E, claro, à maldição do Hotel Cosmopolitan.

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]