amores expresos, blog do Joca

Sunday, May 20, 2007

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL II

Como eu dizia, há uma evidente contrariedade entre a ruína externa e os faustos interiores dos prédios do Cairo. Sob essa ótica, o Cosmopolitan parece ser uma exceção, pois sua fachada magnífica esconde um interior totalmente deteriorado, com quartos imundos e banheiros assombrados pelo fantasma da hepatite. Pelo que compreendi, o prédio foi tomado pelos funcionários, que moram no hotel. Os gerentes e recepcionistas se revezam em seus papéis, causando tal confusão nos hóspedes (que combinam algo com um deles – o preço de uma diária, por exemplo – somente para depois ver o acerto desfeito pelo outro, pelo dublê ou sósia de gerente do momento). Como num filme de Kubrick, pelos corredores do hotel é possível ver crianças fazendo suas lições de casa em qualquer hora do dia ou da noite. Por outro lado, é simplesmente impossível localizar uma camareira e a coisa mais assemelhada a um aspirador de pó é o sistema de ar-condicionado central.

A situação era de tal maneira periclitante que eu esquecera completamente os leitores do Todo Prosa, a revista Veja, Reinaldo Aze(ve)do ou Mirisola & suas mirisolettes. Para falar a verdade, ao ver todas aquelas pessoas miseráveis dormitando pelos cantos das ruínas do Cosmopolitan Hotel, a única coisa que eu lembrava era do crítico e ganhador do Telecom Ricardo Lísias dizendo na Folha de S.Paulo que o projeto Amores Expressos não estava mandando ninguém para “a África negra” ou algo assim. Conferi no mapa e vi que o Egito e toda a sua maldição de faraós galopantes continuava no mesmo lugar, no oeste da África. Confesso que fiquei aliviado. Mas não muito. Eu continuava a existir.

Nesse exato instante o Canal de Suez em meu molar superior esquerdo me sinalizou que permanecia aberto e em plena atividade. Mandei para dentro uma cápsula de Tramal 50, o analgésico opióide receitado por meu dentista, Dr William B. e, totalmente insone, desci ao Kings Bar para mais algumas Stellas em total discordância com suas recomendações a respeito de misturar morfina com álcool. Afogado na fumaça dos cigarros baratos fumados pelos boêmios egípcios, saí delirando pelos corredores do hotel até inadvertidamente ir parar diante da porta do apartamento número 666. Foi somente então que me lembrei: entre tantos hóspedes famosos no passado, o Cosmopolitan também recebera o mago inglês Aleister Crowley, a auto-denominada Besta do Apocalipse. Babujando palavras incompreensíveis em árabe aprendidas com meu taxista predileto (shukran: “obrigado”; aasif: “desculpe”), desci à portaria e um dos duzentos ou trezentos gerentes do hotel me confirmou: era mesmo verdade que Crowley ali estivera nos anos 40. “Foi aqui no Cosmopolitan que ele escreveu ‘The Book of Law’, sir, segundo consta ditado por uma entidade maligna que o possuiu durante uma vista ao Egyptian Museum”, o gerente falou. Tremi na base. Nessa hora uma ventania danada fez rodar com violência a porta giratória do hotel e tive a impressão de ver sair por ela o vulto de uma antiga inimiga, a Egípcia do Crato. Seria mesmo ela? O que estaria fazendo no Cairo fora da temporada de espionagens? Resolvi, incontinenti, segui-la pelas ruas vazias espanadas pelo vento do Saara.

A silhueta delgada da misteriosa Egípcia do Crato movia-se mais rapidamente do que O Sombra, descendo veloz a Sharia Tahrir em direção à Corniche El-Nil, às vezes desaparecendo em meio às golfadas de areia e à nuvem de poluição noturna e surgindo de repente, até ser engolida de vez pela boca enevoada da entrada do Nightclub Scherazade. E então, de súbito, não mais a vi.

Uma ratazana saída de uma fresta do Cine Odeon galopava através da cinzenta Sharia Abdel Hamid Said, enquanto gatos aguardavam, mimetizados nas sombras.

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]