E, afinal, o trigésimo-primeiro dia chegou.
Acordamos cedinho, pois o avião saía às 7h20. Nos despedimos do pessoal do Odeon. Deixei um
baqshish salvador pra rapaziada, além de um exemplar em português de “Miramar”, de Naguib Mahfuz, para o Wael, o professor de línguas. Que lindo. Que maravilhoso. O taxista que eles tinham arranjado nos esperava com seu Fiat 147 possante. Wael deve ter adorado aquele livro em português. “Mas que porra de língua é essa?”, deve ter pensado.
Depois de 31 dias convivendo com a hospitalidade egípcia, acho que terei pesadelos por muitos anos com a palavra “welcome”. Por onde quer que eu andasse no Cairo eu ouvia “welcome”. Eram crianças me seguindo e dizendo “welcome”. Comerciantes que diziam “welcome” à medida que eu passava. Mulheres com os rostos escondidos detrás dos
hegab fazendo reverências e murmurando “welcome” para mim. E até cabras balindo “béééélcome”. Era apavorante. Ao acordar pela manhã para ir comprar pão na El-Abd, bastava colocar o pé na calçada para a rua inteira deixar de fazer o que estava fazendo só para dizer “welcome”. Todo santo dia. O mesmo inferno. Em certa ocasião me escondi num beco de um bairro distante. Era uma rua de terra e não havia ninguém à vista, quando, do fundo de uma porta escura onde não era possível enxergar nada, saiu a voz trêmula de algum moribundo dizendo “welcome”. Pra mim chegava. Era o fim.
Entramos no táxi, eu e a Egípcia do Crato. O avião faria escala em Paris, onde ficaríamos por mais 15 dias, nos recivilizando e nos amando no covil sensual da espiã sexy. Notamos, porém, logo na primeira fala, que o motorista não falava patavinas de inglês. “Tudo bem”, eu pensei, “aqui não tem mesmo outro aeroporto. Não pode ter erro”. E seguimos em frente. No primeiro minuto, o motorista acendeu um cigarro. No Cairo é assim: os taxistas fumam e oferecem um cigarro. “
La’, shukran”, eu disse, esbanjando meu árabe. Eram 4h30 da manhã, pombas. Ainda não era hora. E o Fiat 147 voava nas avenidas vazias. O taxista acelerava, acelerava e então aproveitava a banguela, até quase o carro morrer. Fazia isso e ria. Egípcios, nunca mais. E assim foi até o aeroporto, a 35km do centro da cidade. Acelerava, acelerava e banguela. Depois ria e acendia outro cigarro.
Chegamos no aeroporto. Pelo que entendi, o taxista nunca havia pisado no lugar. Apontei a placa dizendo “Terminal 1 – embarques internacionais”. Não tinha erro. Quando lá chegamos, me despedi com alívio do taxista. Ele ofereceu um cigarro. Agradeci, desperdiçando meu árabe: “
La’, shukran”, eu disse. Ele foi embora e ficamos a não ver nada, eu e a Egípcia do Crato, nem navios, nem aviões e muito menos a plataforma de embarque. O egípcio sonolento do guichê de informações me informou, depois de três bocejos, que a placa estava errada, e a plataforma de embarque correta era no Terminal 2. “Mas é muito longe, não dá pra ir a pé. Espera o ônibus branco aí na frente. Em 10 minutos ele passa”, ele disse, bocejando mais uma vez. Nós ainda tínhamos algum tempo. Não estávamos totalmente atrasados, graças ao esquema “acelera, acelera e banguela” do taxista. Não tinha erro. Claro que não.
Meia hora depois e nada de ônibus. Àquela altura eu já pensava na revista Veja, no Reinaldo Aze(ve)do, nos leitores do TodoProsa e em todo o estafe do Cosmopolitan Hotel me amaldiçoando. Minha paranóia enfiou a manopla na cuíca: será que o taxista e o cara do guichê de informações eram apenas mais duas mirisolettes disfarçadas? Não podia ser. Com as tempestades que a Egípcia do Crato vinha promovendo em minha horta eu achava que aquela maldição já tinha sido levada pelo vento para outras plagas, quem sabe para Istambul ou Lisboa. “Paris não”, eu pensava, “de jeito nenhum.” Foi então que apareceu outro taxista. “
No bus”, ele dizia, “
taxi”, e apontava para o seu Fiat 147 caindo aos pedaços. Juro que eu não quis ser indelicado com ele. Mas não teve jeito. E como é bom poder latir uns palavrões nessa nossa língua que ninguém (nem mesmo a gente) entende. O cara saiu correndo, na medida em que seu Fiat 147 lhe permitia.
E nada do ônibus. Já devíamos ter nos apresentado ao check in fazia tempo e nem sinal do ônibus. Até que o motorista de uma outra linha se apiedou de nós e
deu uma carona até o lugar em que o ônibus correto aguardava sabe-se lá o quê. Uma bomba de Israel? O retorno de Cleópatra? “Egípcios nunca mais”, eu pensava. E enfim chegamos ao Terminal correto e, felizmente, ao final desta história.
Eu poderia continuar e contar a vocês outras coisas mais e que o vôo do Cairo até Paris foi o pior de minha vida, graças ao aperto da poltrona e de uma luta formidável que eu travava com meu aparelho digestivo fazia uns 15 dias, vencida em parte devido à inestimável ajuda recebida das hostes do Faraó IMOSEC I, porém acho que este blog já cumpriu o seu intento de narrar minhas desventuras nas longínquas terras do país de
Misr. Agradeço a todos os que me acompanharam até aqui e os convido
à minha casa, onde volto a postar a partir de julho. Prometo também colocar nesta página em breve um link com as fotos da viagem, assim que forem reveladas.
Quanto à “Maldição do Cosmopolitan Hotel” e ao amor propriamente dito, melhor encerrar com essa notável expressão retirada das histórias em quadrinhos e daqueles antigos seriados exibidos no cinema e que diz muito sobre as expectativas em torno desse sentimento incondicional:
[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]
Um grande abraço a todos!
Joca Reiners TerronParis, 21 de junho de 2007