amores expresos, blog do Joca

Monday, August 20, 2007

SAUDADES DO CAIRO?

Alguém aí sente saudades do Cairo? Pois eu não sinto. Abaixo segue um vídeo gravado a partir da janela de um hotel na Sharia Talaat Harb, ao lado do Cine Metro, o mais tradicional da cidade. O que pode ser visto é uma multidão troglodita "assediando" (temo que a palavra não seja a mais adequada para a situação) duas turistas ocidentais. Isso ocorre no centro comercial mais populoso do Cairo, a cerca de dois quarteirões daonde me hospedei durante toda minha estada egípcia. Assistam e tirem suas próprias conclusões.

Wednesday, June 20, 2007

MA’IS SALAAMA – A PARTIDA


E, afinal, o trigésimo-primeiro dia chegou.

Acordamos cedinho, pois o avião saía às 7h20. Nos despedimos do pessoal do Odeon. Deixei um baqshish salvador pra rapaziada, além de um exemplar em português de “Miramar”, de Naguib Mahfuz, para o Wael, o professor de línguas. Que lindo. Que maravilhoso. O taxista que eles tinham arranjado nos esperava com seu Fiat 147 possante. Wael deve ter adorado aquele livro em português. “Mas que porra de língua é essa?”, deve ter pensado.

Depois de 31 dias convivendo com a hospitalidade egípcia, acho que terei pesadelos por muitos anos com a palavra “welcome”. Por onde quer que eu andasse no Cairo eu ouvia “welcome”. Eram crianças me seguindo e dizendo “welcome”. Comerciantes que diziam “welcome” à medida que eu passava. Mulheres com os rostos escondidos detrás dos hegab fazendo reverências e murmurando “welcome” para mim. E até cabras balindo “béééélcome”. Era apavorante. Ao acordar pela manhã para ir comprar pão na El-Abd, bastava colocar o pé na calçada para a rua inteira deixar de fazer o que estava fazendo só para dizer “welcome”. Todo santo dia. O mesmo inferno. Em certa ocasião me escondi num beco de um bairro distante. Era uma rua de terra e não havia ninguém à vista, quando, do fundo de uma porta escura onde não era possível enxergar nada, saiu a voz trêmula de algum moribundo dizendo “welcome”. Pra mim chegava. Era o fim.

Entramos no táxi, eu e a Egípcia do Crato. O avião faria escala em Paris, onde ficaríamos por mais 15 dias, nos recivilizando e nos amando no covil sensual da espiã sexy. Notamos, porém, logo na primeira fala, que o motorista não falava patavinas de inglês. “Tudo bem”, eu pensei, “aqui não tem mesmo outro aeroporto. Não pode ter erro”. E seguimos em frente. No primeiro minuto, o motorista acendeu um cigarro. No Cairo é assim: os taxistas fumam e oferecem um cigarro. “La’, shukran”, eu disse, esbanjando meu árabe. Eram 4h30 da manhã, pombas. Ainda não era hora. E o Fiat 147 voava nas avenidas vazias. O taxista acelerava, acelerava e então aproveitava a banguela, até quase o carro morrer. Fazia isso e ria. Egípcios, nunca mais. E assim foi até o aeroporto, a 35km do centro da cidade. Acelerava, acelerava e banguela. Depois ria e acendia outro cigarro.

Chegamos no aeroporto. Pelo que entendi, o taxista nunca havia pisado no lugar. Apontei a placa dizendo “Terminal 1 – embarques internacionais”. Não tinha erro. Quando lá chegamos, me despedi com alívio do taxista. Ele ofereceu um cigarro. Agradeci, desperdiçando meu árabe: “La’, shukran”, eu disse. Ele foi embora e ficamos a não ver nada, eu e a Egípcia do Crato, nem navios, nem aviões e muito menos a plataforma de embarque. O egípcio sonolento do guichê de informações me informou, depois de três bocejos, que a placa estava errada, e a plataforma de embarque correta era no Terminal 2. “Mas é muito longe, não dá pra ir a pé. Espera o ônibus branco aí na frente. Em 10 minutos ele passa”, ele disse, bocejando mais uma vez. Nós ainda tínhamos algum tempo. Não estávamos totalmente atrasados, graças ao esquema “acelera, acelera e banguela” do taxista. Não tinha erro. Claro que não.

Meia hora depois e nada de ônibus. Àquela altura eu já pensava na revista Veja, no Reinaldo Aze(ve)do, nos leitores do TodoProsa e em todo o estafe do Cosmopolitan Hotel me amaldiçoando. Minha paranóia enfiou a manopla na cuíca: será que o taxista e o cara do guichê de informações eram apenas mais duas mirisolettes disfarçadas? Não podia ser. Com as tempestades que a Egípcia do Crato vinha promovendo em minha horta eu achava que aquela maldição já tinha sido levada pelo vento para outras plagas, quem sabe para Istambul ou Lisboa. “Paris não”, eu pensava, “de jeito nenhum.” Foi então que apareceu outro taxista. “No bus”, ele dizia, “taxi”, e apontava para o seu Fiat 147 caindo aos pedaços. Juro que eu não quis ser indelicado com ele. Mas não teve jeito. E como é bom poder latir uns palavrões nessa nossa língua que ninguém (nem mesmo a gente) entende. O cara saiu correndo, na medida em que seu Fiat 147 lhe permitia.

E nada do ônibus. Já devíamos ter nos apresentado ao check in fazia tempo e nem sinal do ônibus. Até que o motorista de uma outra linha se apiedou de nós e deu uma carona até o lugar em que o ônibus correto aguardava sabe-se lá o quê. Uma bomba de Israel? O retorno de Cleópatra? “Egípcios nunca mais”, eu pensava. E enfim chegamos ao Terminal correto e, felizmente, ao final desta história.

Eu poderia continuar e contar a vocês outras coisas mais e que o vôo do Cairo até Paris foi o pior de minha vida, graças ao aperto da poltrona e de uma luta formidável que eu travava com meu aparelho digestivo fazia uns 15 dias, vencida em parte devido à inestimável ajuda recebida das hostes do Faraó IMOSEC I, porém acho que este blog já cumpriu o seu intento de narrar minhas desventuras nas longínquas terras do país de Misr. Agradeço a todos os que me acompanharam até aqui e os convido à minha casa, onde volto a postar a partir de julho. Prometo também colocar nesta página em breve um link com as fotos da viagem, assim que forem reveladas.

Quanto à “Maldição do Cosmopolitan Hotel” e ao amor propriamente dito, melhor encerrar com essa notável expressão retirada das histórias em quadrinhos e daqueles antigos seriados exibidos no cinema e que diz muito sobre as expectativas em torno desse sentimento incondicional:

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]

Um grande abraço a todos!

Joca Reiners Terron

Paris, 21 de junho de 2007

Monday, June 18, 2007

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL VIII

O vento frio ao longo da avenida Champs Élysées despenteava plátanos e castanheiras sob a luz minguante do sol poente até culminar na Place de la Concorde, erguendo a lapela do casaco à altura de meu rosto como na tentativa de um beijo roubado. O súbito obstáculo soprado pela ventania tapou por breves instantes a figura da Egípcia do Crato recortada contra o sol e vinda em minha direção com seu passo largo e algo marcial, aprendido em alguma escola de espiãs sexys. Nós aproveitávamos a estada em Paris para visitar o obelisco trazido de Luxor no século XIX e instalado ali na praça, além de dar um tchauzinho para os amigos egípcios na forma de hieroglifos esculpidos no monumento (“Welcome, welcome”, diziam os gatos e as íbis em baixo-relevo no granito).

Eu não esperava que aquele obelisco me contasse a história de amor que Tutankhamon e a Esfinge não foram capazes de contar, claro, mesmo porque eu já vivia a minha própria love story e não precisava mais que ninguém me contasse porra nenhuma. Não posso negar minha surpresa, entretanto, ao enxergar inesperadas conotações amorosas e sexuais nos textos e desenhos dispostos no pedestal e que explicam a halace, virement et erection de l’obelisque par M. Lebas, ingénieur na Place de la Concorde. Afinal um monumento histórico egípcio me contava qualquer coisa que se relacionasse a esse montanhoso sentimento pleno de altos e baixos (e que às vezes até mesmo carece de auxílio técnico do departamento de engenharia), e tinha de ser um monumento em forma de falo, sem dúvida.

Foi relembrando a viagem que eu e a Egípcia do Crato fizemos a Luxor e observando aquela ereção gigantesca que ameaçava inundar o vizinho Jardin des Tuilleries que de novo comecei a digredir, tecendo considerações sobre a forma com que os egípcios se relacionam entre si e com os outros cidadãos deste planeta tão confuso. Há duas semanas atrás, no dia 3 de junho, eu e ela caminhávamos na Corniche El-Nil (o calçadão que margeia o Nilo e de idêntico nome ao do seu similar no Cairo) sob a luz atordoante do meio-dia no Vale do Nilo quando, a cerca de 15 metros de nós, um homem calmamente levantou a sua gabbeyia (vocês já sabem, aquela túnica usada pelos egípcios) e começou a se masturbar. Ele estava sentado num dos diversos bancos dispostos na calçada e olhava para a Egípcia do Crato e para mim, nos homenageando ao vivo e em cores à medida que desfilávamos nossos corpinhos inspiradores diante de seus olhos apaixonados. De imediato meus brios de macho cristão civilizado me levaram a pensar se não seria o caso de um discreto corretivo no louco, mas acabei concluindo que, hum, bem, e se for absolutamente comum uma coisa desse tipo acontecer no Egito? Sim, pois casos de estupros e masturbadores furtivos que “homenageiam” turistas em cemitérios ou em outros lugares menos inapropriados são relatados com absurda frequência em todos os guias de viagem, e mais ainda – e com maior riqueza de detalhes -- nos fóruns da internet. Acabei deixando pra lá (afinal, quem sou eu para corrigir o desejo de alguém, um Delegado da Bronha Alheia?) e seguindo caminho. Quando olhei para trás, o punheteiro já tinha deixado de olhar para a minha bunda e transferia toda a sua concentração manual e inspiracional às duas americanas de shortinho que vinham atrás de nós. Torço para que elas tenham conseguido se desviar dos perdigotos a tempo.

A semana de intensa paixão que se iniciara no litoral de Alexandria, porém, e prosseguia ali, às margens espetaculares do Nilo em Luxor, já havia me fornecido suficiente know how a respeito do impressionante interesse lúbrico dos homens egípcios em relação às ocidentais e também em relação aos ocidentais, o que não chega a ser um escândalo para mim (dada a tradição de turismo homossexual por aquelas bandas, que remonta a Alexandre, o Grande, chegando até William Burroughs e Paul Bowles). O fato é que pode ser um verdadeiro martírio para um sujeito possessivo caminhar acompanhado de sua mulher pelas ruas do Egito. A auto-estima gigantesca que os egípcios carregam é embasbacante e fará com que qualquer um deles, e quando digo qualquer um é qualquer um mesmo, do mendigo ao desdentado, do balofo ao tiozinho-fim-de-carreira, aborde a mulher ao seu lado à sua passagem. E nada é suficiente para convencê-los de que aquela mulher não está disponível, e se ela não estiver de braços dados com você, a coisa certamente atingirá níveis insuportáveis. Para ela, principalmente.

Não custa lembrar que os homens e os deuses, de acordo com a mitologia dos antigos egípcios, nasceram de uma ejaculação do deus Atum, representado pelo sol poente. Ou seja, de acordo com os egípcios, o universo surgiu de uma punheta batida pelo Sol. Talvez esse fundo mitológico e poético não justifique a sem-vergonhice galante dos egípcios atuais, mais provavelmente fundada em heranças culturais relacionadas à segregação feminina. No Egito islâmico as mulheres são e sempre foram mero detalhe, aquela dona responsável pela limpeza da casa e por cuidar dos filhos. Elas, de acordo com a tradição, não podem trabalhar fora e não podem cuidar de sua própria vida, cabendo aos homens todo e qualquer tipo de trabalho. No Egito é quase impossível, a não ser nas classes mais altas, ver mulheres trabalhando.

Essa segregação causou diversas mudanças de comportamento entre os homens, que andam de mãos dadas e abraçadinhos por todos os lugares, trocando aconchegos explícitos o tempo todo. Um hábito comum entre os homens egípcios, por exemplo, é o de “pegação” violenta. Aquelas famosas brincadeirinhas de luta que estamos acostumados a ver entre meninos impúberes, no Egito acontece com enorme frequência com homens de todas as idades, dos garotos aos velhinhos. Então é aquela encoxação meio histérica entre barbudos em todas as esquinas, bares e mesquitas. Falta de mulher, concluo, mesmo não entendendo nada. E olho aquela imensa multidão de mulheres engordando debaixo de roupas pretas que deixam apenas seus olhinhos tristes de fora e penso num poema de Rimbaud que acusa Cristo de ser um “eterno ladrão de energia”. Chego à conclusão de que com o profeta Muhammad não é diferente.

Deixando para trás a Corniche El-Nil e o triste masturbador solitário, apertei com toda a força a mão da Egípcia do Crato, dizendo o quanto a amo e que ela fizesse bom proveito de toda a energia que eu tiver para dar.

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]

Friday, June 15, 2007

O ATAQUE DAS MIRISOLETTES GIGANTES

Eu seguia pelas trilhas primaveris do Jardin de Luxembourg, curtindo meu doloroso processo de recivilização após um mês inteiro de pura barbárie cairota movida a Stellas e shishas em combustão quando, sob a luz do sol que ilumina tudinho e não esconde nadinha, uma furibunda gangue de mirisolettes gigantes tentou roubar minha mochila contendo preciosos manuscritos e moleskines inteiros preenchidos com os desenhinhos e esqueminhas para escrever uma história de amor imprescindíveis a um escritor cerebral feito eu.

Fiquei aturdido por instantes, principalmente com o cecê de Leite de Rosas Davene subtraído da mamãe exalado pelos sovacos das mirisolettes, mas consegui dar no pé a tempo. Como consegui escapar? Joguei uma caixa de comentários no chão e elas se distraíram, fazendo comentários malvadinhos sobre escritores descolados que nunca publicaram livros e a programação da Flapt 2009 durante horas seguidas. Depois coloquei um crachá no peito de cada um deles escrito “colunista” e disse “Pronto. Agora vocês podem brincar de adivinhar quem entra e quem não entra no futuro da literatura brasileira.”

E as mirisolettes gigantes ficaram lá, fazendo merda sozinhas sem encher o saco de ninguém, enquanto eu bebia umas cervejas (belgas -- chega de cervejas egípcias, ao menos por esta encadernação) bem longe dali.

Tuesday, June 12, 2007

UM NINHO DE OSSOS

Quem me contou esta história foi meu amigo Wael. Eu lhe perguntara se a dieta tão minguada de carne do dia a dia dos egípcios não o incomodava. E ele, como muçulmano devoto que é, em vez de responder “sim” ou “não”, me veio com uma parábola. A parábola parece ser mesmo um ponto de contato entre as religiões cristãs e o islamismo, e esta história me interessou pelo fato de não ser a verdade propalada por algum profeta secular, mas sim uma fábula urbana do Cairo contemporâneo.

Sentado atrás do front desk do Odeon Palace Hotel, Wael esclareceu vários mistérios que eu necessitava desvendar de uma só vez. O primeiro deles era por que os apartamentos do Odeon começavam apenas no 7º andar. O que poderia haver nos seis pisos abaixo do meu?, era o que eu me perguntava desde minha chegada. “Gente”, disse Wael, “mas não só gente”, continuou, acrescentando pitadas de enigma ao caldo de sua narrativa. “Tem bicho também, além de gente. Como a carne aqui é muito cara e as pessoas não têm dinheiro, elas começaram a criar bichos nas escadas e nos patamares de cada andar do prédio. Galinhas, pombos, patos, gansos e cabras, principalmente”, Wael disse, rindo de minha cara de espanto.

A história é também bastante indicativa da nostalgia rural experimentada pela população da cidade do Cairo, pensei com meus botões filosóficos, já que Wael me assegurou de que a criação de animais para subsistência das famílias não chega a ser privilégio do Odeon e que grande parte dos edifícios degradados do centro do Cairo abrigam suas granjas e currais internos, com pessoas convivendo com animais clandestinamente nos espaços interiores da megalópole. Confesso que o relato de Wael me aliviou um bocado, pois desde minha chegada eu vinha sonhando com balidos e cacarejos noturnos, a ponto de começar a questionar o equilíbrio de minha própria sanidade, talvez enlouquecida por alguma febre do deserto.

“Há cerca de cinco anos, porém, algo muito estranho aconteceu aqui no Odeon”, falou Wael, coçando o calo no meio de sua testa. “Um velho casal de coptas vivia no apartamento do sexto andar, até que a mulher morreu. O velho, que já era bastante fechado, depois da morte da dona isolou-se por completo, deixando de falar com os vizinhos e quase não saindo de casa”, ele prosseguiu, agora enrolando com cuidado um turbante na cabeça. “Com o passar do tempo, os moradores do Odeon descobriram que a mulher tinha morrido de câncer. Os egípcios são muito supersticiosos com o câncer. Se uma esposa adoece, por exemplo, o marido certamente a abandonará, afastando-a dos filhos com medo de que ela os contamine com a doença. Eles também nunca citam a parte do corpo tomada pelo câncer, pelo mesmo motivo.”

Pensando bem, essa ignorância temperada com misticismo não é de maneira alguma privilégio dos egípcios, fazendo lembrar as numerosas crendices que povoam os sertões brasileiros de Norte a Sul, com suas hordas de curandeiros e mil e uma benzeções e maldições. No caso específico do mundo árabe, porém, e muito devido ao fato de o Islam não condenar a magia e o misticismo (basta pensar nos Sufis e seus dervixes), o coquetel decorrente dessa mistura de devoção religiosa com ignorância primitivista pode ser explosivo. E assim sucedeu no Odeon Palace Hotel.

“Quando as pessoas descobriram que a velha tinha morrido de câncer, elas começaram a perseguir o viúvo, identificando-o como um djinn”, Wael continuou. “O djinn é um espírito ruim e de influência nociva, não por acaso uma pessoa pertencente a outra religião. Como o velho era cristão copta e sua mulher morrera daquela doença terrível, ele certamente estava possuído por um espírito do mal, era o que todos acreditavam. Daí, certo dia, o velho saiu e ficou uma semana fora, talvez visitando parentes no oásis de Siwa, voltando durante a noite sem que ninguém o visse entrar. Depois disso, com o passar dos meses, ele não foi mais visto, apesar de todos saberem que estava em seu apartamento. Foi então que os bichos começaram a desaparecer das escadarias do Odeon. Primeiro foram animais menores que sumiram, uma gaiola de pombos foi arrebentada e poucas aves sobreviventes foram novamente encontradas pelos vãos do prédio, totalmente apavoradas. Após alguns dias, acharam marcas de sangue no patamar do primeiro andar e um pato e um ganso sumiram de seus cercados. Nesse meio tempo os moradores começaram a distribuir talismãs pelo prédio inteiro, dependurando olhos de Hórus de vidro em todas as portas. Chegaram até mesmo a colocar um enorme diwan, uma Mão-de-Fátima de cobre, aqui no front desk do hotel. E então, na primeira lua cheia após as mortes começarem a acontecer, um aterrorizante uivo se fez ouvir pelas escadarias do Odeon, ribombando nas paredes e ecoando do primeiro ao último andar, e uma cabra foi encontrada parcialmente devorada num desvão do segundo piso. No dia seguinte pela manhã, os homens do prédio se reuniram e concluíram que o responsável pela desaparição dos bichos só podia ser o velho djinn do sexto andar. Eles então decidiram lacrar sua porta, pregando tábuas e assim impedindo que ele novamente saísse de seu apartamento”, disse Wael. Ele suspendeu um pouco a narrativa, aproveitando para apreciar os efeitos causados por sua história em minha fisionomia pasma e ver que suas palavras haviam engolido completamente as minhas.

“Quinze dias após terem trancado o velho copta e intrigados com os uivos e ganidos que continuaram ressoando pelo prédio, os homens do Odeon resolveram abrir a porta para ver o que havia acontecido”, Wael disse, “e nem consigo imaginar seu espanto com o que encontraram no apartamento. No centro da sala, quase estático e com seu vasto pelame vibrando devagar com a respiração, estava um imenso chacal do deserto deitado sobre o ninho de ossos que semanas atrás tinham pertencido ao velho copta.”

Entregando minhas chaves e me desejando bons sonhos, Wael despediu-se de mim com um olhar de satisfação. Entrei no elevador e, enquanto os antigos mecanismos que inexplicavelmente ainda o mantinham funcionando me içavam ao sétimo andar, eu subia, elevado por uivos e toda sorte de sons animais vindos das escadarias do Odeon Palace Hotel e de desertos muito mais longínquos e selvagens.

Monday, June 11, 2007

EM KHAN AL-KHALILI

Nas imediações do souq medieval de Khan Al-Khalili, acompanhado da espiã francesa Egípcia do Crato, alguns dias depois de ser sequestrado por ela para viagens de trem até Alexandria e Luxor (aguarde os próximos e finais capítulos de “A maldição do Cosmopolitan Hotel”) e um pouco antes de vir a Paris, onde estou desde o dia 10 de junho em intenso processo de recivilização.

NO CAFÉ EL HORREIYA

Nesta foto, o cineasta, fotógrafo e ex-animador de auditório (lembram da “Fábrica do Som”?) Tadeu Jungle tenta (em vão) apostar corrida de Stellas com seu entrevistado. Gravamos o papo no Café El Horreiya, na Midan Al Falaki, um bar fundado em 1908 frequentado pela malandragem do centro da cidade. O El Horreiya demarca também o início da parte islâmica do Cairo (definição imprecisa, pois – com exceção da parte velha da cidade, de origem romana e copta – a cidade é inteiramente muçulmana), sendo o último bastião da boemia antes de penetrar terrenos do Islam, onde achar uma bira torna-se missão impossível até mesmo para o mais incansável apreciador dos poderes revigorantes desse notável refrigerante etílico.