amores expresos, blog do Joca

Tuesday, June 12, 2007

UM NINHO DE OSSOS

Quem me contou esta história foi meu amigo Wael. Eu lhe perguntara se a dieta tão minguada de carne do dia a dia dos egípcios não o incomodava. E ele, como muçulmano devoto que é, em vez de responder “sim” ou “não”, me veio com uma parábola. A parábola parece ser mesmo um ponto de contato entre as religiões cristãs e o islamismo, e esta história me interessou pelo fato de não ser a verdade propalada por algum profeta secular, mas sim uma fábula urbana do Cairo contemporâneo.

Sentado atrás do front desk do Odeon Palace Hotel, Wael esclareceu vários mistérios que eu necessitava desvendar de uma só vez. O primeiro deles era por que os apartamentos do Odeon começavam apenas no 7º andar. O que poderia haver nos seis pisos abaixo do meu?, era o que eu me perguntava desde minha chegada. “Gente”, disse Wael, “mas não só gente”, continuou, acrescentando pitadas de enigma ao caldo de sua narrativa. “Tem bicho também, além de gente. Como a carne aqui é muito cara e as pessoas não têm dinheiro, elas começaram a criar bichos nas escadas e nos patamares de cada andar do prédio. Galinhas, pombos, patos, gansos e cabras, principalmente”, Wael disse, rindo de minha cara de espanto.

A história é também bastante indicativa da nostalgia rural experimentada pela população da cidade do Cairo, pensei com meus botões filosóficos, já que Wael me assegurou de que a criação de animais para subsistência das famílias não chega a ser privilégio do Odeon e que grande parte dos edifícios degradados do centro do Cairo abrigam suas granjas e currais internos, com pessoas convivendo com animais clandestinamente nos espaços interiores da megalópole. Confesso que o relato de Wael me aliviou um bocado, pois desde minha chegada eu vinha sonhando com balidos e cacarejos noturnos, a ponto de começar a questionar o equilíbrio de minha própria sanidade, talvez enlouquecida por alguma febre do deserto.

“Há cerca de cinco anos, porém, algo muito estranho aconteceu aqui no Odeon”, falou Wael, coçando o calo no meio de sua testa. “Um velho casal de coptas vivia no apartamento do sexto andar, até que a mulher morreu. O velho, que já era bastante fechado, depois da morte da dona isolou-se por completo, deixando de falar com os vizinhos e quase não saindo de casa”, ele prosseguiu, agora enrolando com cuidado um turbante na cabeça. “Com o passar do tempo, os moradores do Odeon descobriram que a mulher tinha morrido de câncer. Os egípcios são muito supersticiosos com o câncer. Se uma esposa adoece, por exemplo, o marido certamente a abandonará, afastando-a dos filhos com medo de que ela os contamine com a doença. Eles também nunca citam a parte do corpo tomada pelo câncer, pelo mesmo motivo.”

Pensando bem, essa ignorância temperada com misticismo não é de maneira alguma privilégio dos egípcios, fazendo lembrar as numerosas crendices que povoam os sertões brasileiros de Norte a Sul, com suas hordas de curandeiros e mil e uma benzeções e maldições. No caso específico do mundo árabe, porém, e muito devido ao fato de o Islam não condenar a magia e o misticismo (basta pensar nos Sufis e seus dervixes), o coquetel decorrente dessa mistura de devoção religiosa com ignorância primitivista pode ser explosivo. E assim sucedeu no Odeon Palace Hotel.

“Quando as pessoas descobriram que a velha tinha morrido de câncer, elas começaram a perseguir o viúvo, identificando-o como um djinn”, Wael continuou. “O djinn é um espírito ruim e de influência nociva, não por acaso uma pessoa pertencente a outra religião. Como o velho era cristão copta e sua mulher morrera daquela doença terrível, ele certamente estava possuído por um espírito do mal, era o que todos acreditavam. Daí, certo dia, o velho saiu e ficou uma semana fora, talvez visitando parentes no oásis de Siwa, voltando durante a noite sem que ninguém o visse entrar. Depois disso, com o passar dos meses, ele não foi mais visto, apesar de todos saberem que estava em seu apartamento. Foi então que os bichos começaram a desaparecer das escadarias do Odeon. Primeiro foram animais menores que sumiram, uma gaiola de pombos foi arrebentada e poucas aves sobreviventes foram novamente encontradas pelos vãos do prédio, totalmente apavoradas. Após alguns dias, acharam marcas de sangue no patamar do primeiro andar e um pato e um ganso sumiram de seus cercados. Nesse meio tempo os moradores começaram a distribuir talismãs pelo prédio inteiro, dependurando olhos de Hórus de vidro em todas as portas. Chegaram até mesmo a colocar um enorme diwan, uma Mão-de-Fátima de cobre, aqui no front desk do hotel. E então, na primeira lua cheia após as mortes começarem a acontecer, um aterrorizante uivo se fez ouvir pelas escadarias do Odeon, ribombando nas paredes e ecoando do primeiro ao último andar, e uma cabra foi encontrada parcialmente devorada num desvão do segundo piso. No dia seguinte pela manhã, os homens do prédio se reuniram e concluíram que o responsável pela desaparição dos bichos só podia ser o velho djinn do sexto andar. Eles então decidiram lacrar sua porta, pregando tábuas e assim impedindo que ele novamente saísse de seu apartamento”, disse Wael. Ele suspendeu um pouco a narrativa, aproveitando para apreciar os efeitos causados por sua história em minha fisionomia pasma e ver que suas palavras haviam engolido completamente as minhas.

“Quinze dias após terem trancado o velho copta e intrigados com os uivos e ganidos que continuaram ressoando pelo prédio, os homens do Odeon resolveram abrir a porta para ver o que havia acontecido”, Wael disse, “e nem consigo imaginar seu espanto com o que encontraram no apartamento. No centro da sala, quase estático e com seu vasto pelame vibrando devagar com a respiração, estava um imenso chacal do deserto deitado sobre o ninho de ossos que semanas atrás tinham pertencido ao velho copta.”

Entregando minhas chaves e me desejando bons sonhos, Wael despediu-se de mim com um olhar de satisfação. Entrei no elevador e, enquanto os antigos mecanismos que inexplicavelmente ainda o mantinham funcionando me içavam ao sétimo andar, eu subia, elevado por uivos e toda sorte de sons animais vindos das escadarias do Odeon Palace Hotel e de desertos muito mais longínquos e selvagens.