amores expresos, blog do Joca

Tuesday, May 29, 2007

FAVAS

O prato típico do Egito de que mais gostei até agora é o fuul, que é a palavra árabe para fava. Os egípcios comem favas de tudo quanto é jeito, como mezzes (aperitivos), em sanduíches feitos com taamiyya (o falafel daqui, que são bolos feitos de favas amassadas temperados com ervas diversas e fritos) ou cozidos simplesmente com tomates e cebolas e temperados com pimenta síria, cominho, sal e limão.

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Esta última é a forma que são servidas as porções de favas no Cape D’Or, o melhor boteco daqui do centro do Cairo. Eu sou particularmente fascinado por botecos da Belle Époque, aqueles bares com jeitão de cafés, tetos altíssimos e belos móveis antigos. A frequência do Cape D’Or (que fica na Sharia Abdel Khalek Sarwat, quase na Talaat Harb) hoje em dia não tem mais a mesma exuberância de seus primórdios no início do século XX, mas ainda tem lá seus atrativos. Um deles são as mezzes servidas gratuitamente a cada Stella solicitada, basicamente porções de tomates, rúculas, queijo (um queijo fresco local chamado domiati cujo sabor lembra um pouco o da ricota), tremoços e favas. As favas do Cape D’Or são particularmente deliciosas e, se você beber algumas Stellas, sairá do bar sem a necessidade de jantar.

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A forma mais deliciosa do fuul até agora, porém, é a servida no restaurante Abou-el-Said (ou el-Seid ou mesmo el-Sid, pois já vi essas três grafias por aí). Amassado e misturado com azeite, alho e limão (assim como o babhaganush e o hummus) e temperado com cebolas e bell pepper (uma pimenta vermelha cujo nome árabe ainda não entendi e de sabor desconhecido para mim), é uma iguaria inigualável. Basta ir beliscando a pasta com pedacinhos de pão sírio torrado ou com taamiyya e seu lugar no paraíso está garantido.

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Dia desses mantive uma longa e agradável conversa no Cape D’Or com o dr Samir, uma rara exceção à simpatia interesseira da maioria dos cairotas. Pediatra, o senhor gordinho e calvo trabalhou por 3 anos em Trinidad-Tobago e estava acompanhado de seus amigos Emil, um joalheiro velhinho que tem loja no souq (mercado) de Khan Al-Khalili, o enclave medieval no centro do Cairo islâmico (o termo é impreciso, já que todo o Cairo é islâmico), e outro cujo nome não registrei e que generosamente me entupiu de alguns Belmont, o melhor cigarro egípcio. Dr Samir e os amigos se encontram todas as quartas no Cape D’Or para tomar algumas geladas e colocar a prosa em dia.

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Os três convivas do Cape D’Or são coptas, a variação cristã ortodoxa encontrada no Cairo. Em diversas ocasiões da conversa e depois de saber que eu vinha de família católica, pude perceber algumas ironias do dr Samir endereçadas aos muçulmanos. As diferenças religiosas aqui não são brincadeira e, cerca de um mês atrás, houve um confronto entre as duas facções que deixou dezenas de pessoas com ferimentos graves. O quebra-quebra foi iniciado pelos muçulmanos, que acusavam os coptas de terem iniciado a construção de uma igreja em terreno sagrado do Islam.

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Apesar da presença copta disseminada na cidade, muito além dos limites do bairro copta demarcados pelas muralhas da antiga Babilônia (uma área com a mesma idade e aparência semelhante a dos bairros antigos de Jerusalém), fundada pelos romanos 3 séculos DC, o Cairo é predominantemente muçulmano.

Na cidade existem 10 mil mesquitas em atividade, além de dezenas de milhares de zawayas, cantos de oração com capacidade de reunir centenas de fiéis. O problema é que cada uma dessas mesquitas e dessas zawayas é equipada com equipamentos de som altíssimos. Esses equipamentos são acionados 5 vezes ao dia com chamados à oração, (5 é o número de vezes que os muçulmanos rezam, começando ao raiar do dia -- às 4h30 da matina -- e culminando à noite, em torno das 21h30). Nesses horários, um muezzin em cada mesquita e cada zawaya canta trechos do Alcorão em altos brados hiper-amplificados que terminam por cobrir toda a cidade. Se eu consigo dormir? E você acha que alguém dorme no Cairo?

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A devoção religiosa do povo egípcio pode ser verificada pelo número impressionante de homens com calos escuros no meio de suas testas. Esses calos indicam o grau de fervor religioso de seus dono e quanto tempo de suas vidas eles dedicam a rezar de joelhos, com suas testas apoiadas no chão geralmente coberto por tapetes. E os muçulmanos rezam em qualquer lugar, no meio da multidão em movimento ou mesmo dentro do cybercafé.

Esta cidade de 1400 anos chamada Al Qahihra é mesmo um espetáculo de fé e persistência, e a forma com que ainda existe, equilibrando-se entre o deserto e a pujança do Nilo, entre a absoluta miséria de seu presente e a riqueza do passado faraônico, é apenas mais uma constatação da inquestionável vitória do absurdo sobre a realidade.