amores expresos, blog do Joca

Saturday, June 9, 2007

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL VII

Enquanto a Egípcia do Crato aguçava sua beleza num banho de espuma, eu tergiversava olhando o mar. Alexandria estabeleceu sua aura de balneário decadentista ainda no século XIX, quando o Paxá Muhammad Ali (o criador do Egito moderno) transformou a cidade no principal porto comercial do país e a renovou, criando prédios modernos e abrindo-a para o capital estrangeiro. Foi nesse período de dominação otomana que se iniciou a poderosa influência britânica no Egito, que se intensificaria com a inauguração do Canal de Suez em 1869 pelo Khedive Ismail, filho de Muhammad Ali.

A grana européia ergueu coisas belíssimas no Egito. Edifícios, colunatas, arcadas, belvederes, boulevards, fontes, avenidas e praças lindíssimas, tudo isto espelhava o desejo excêntrico dos milionários de reproduzirem grandes cidades da Europa em pleno Oeste Africano, misturando a arquitetura ocidental com fachadas neo-islâmicas, minaretes turcos e abóbadas mamelucas, fazendo assim do Cairo e de Alexandria cidades únicas no mundo, com seus delírios de idealização oriental arquitetônica. A festa acabou em 1952, quando Gamal Abdel Nasser deu o golpe de estado, fundando a República Árabe do Egito e despachando o Rei Farouk (que saiu pela culatra aqui mesmo de Alexandria, zarpando do Palácio Ras El Tin para a Itália, onde morreria dez anos depois, engasgado com comida num restaurante – ô triste fim da pantomima monárquica!) e, por consequência, mandando os britânicos embora.

É nesse ponto que a Egípcia do Crato me interrompe, saindo do banheiro. Eu gostaria de descrevê-la com um vestido diáfano decotado, mas não estaria sendo correto com a realidade islâmica de Alexandria e do resto do Egito. Se uma mulher sair em público aqui mostrando, hum, vejamos, os ombros, ela será ofendida desde o primeiro passo que der na rua até o último, isto se não acontecer coisa pior. A Egípcia do Crato, porém, mantinha seu garbo de espiã mesmo em seus jeans. E eu sempre poderia admirar seu rosto e suas mãos. Foi fazendo isto, debaixo dos espetaculares lustres do amplo salão do Café Trianon, que comecei a desenvolver algumas teorias.

A república árabe de Nasser foi responsável, entre outras coisas, pela legítima nacionalização do Canal de Suez (ai!), o que gerou imediata retaliação dos países que iam e vinham pra lá e pra cá, transportando suas mercadorias sem taxação alguma. Nasser também desapropriou todos os prédios, escritórios e casas de europeus que caíram fora após a revolução. Essa foi praticamente uma condenação à morte de toda a arquitetura fin-de-siècle, abandonada ao descaso público. Não tenho dados específicos sobre Alexandria, onde o fenômeno consequente não difere do ocorrido no Cairo, cujos dados fornecidos pela prefeitura em 2002 permitem entender o grau da encrenca: 60% da população do Cairo vive clandestinamente em prédios ilegais e sem níveis adequados de segurança; 25% dos prédios estão à beira do colapso, enquanto que 40% não atendem condições higiênicas para habitação e 850.000 estão condenados. Aqui no Egito um número impressionante de pessoas morre soterrada pela própria(?) casa ou achatada nas ruas por sacadas que despencam sobre sua cabeça. É por essas e outras que convém no Egito caminhar sempre olhando para o alto. E não espere por um piano caindo do nono andar, mas o nono andar inteiro, incluindo o piano.

Toda essa doideira me faz pensar no Egito como um paradoxo ululante, pois enquanto templos e monumentos de 3.000 anos AC continuam intactos, em muito breve as recordações do século XIX e XX não passarão de ruínas. Idéia ainda mais trágica é a de que não serão encontradas múmias de faraós célebres debaixo delas, mas apenas os ossos anônimos dos miseráveis do presente.

Passeando com a Egípcia do Crato entre as belezas arquitetônicas da belle époque que ainda subsistem em meio à quase totalidade de prédios arruinados de Alexandria, perfazíamos o caminho literário praticado por E. M. Forster, Lawrence Durrell e o poeta grego Konstantinos Kavafis. Enquanto Forster e Durrell se esconderam por aqui apenas durante a Segunda Guerra Mundial e escreveram suas obras descrevendo o lugar somente anos depois, Cavafis passou toda a vida em Alex. Filho de uma família com posses que se viu de repente na merda, ele trabalhou a vida toda num escritório sobre o Café Trianon, em cujas mesas escrevia seus magníficos poemas permeados de reminiscências clássicas greco-romanas e homoerotismo (traduzidos aí no Brasil pelo grande José Paulo Paes). O apartamento de segundo andar num prédio baixo onde o poeta viveu seus últimos 25 anos, transformado em pequeno museu, é um sonho de qualquer escritor. Numa pequena viela calma e arborizada da Sharia Nabi-Daniel, a casa de Kavafis fica a poucos quarteirões do Café Pastroudis (fechado recentemente, vejam só que desgraça), sendo que num extremo do beco fica uma igreja ortodoxa grega e no outro, o Hospital Grego. “Abrigos para o espírito e para o corpo sob idêntico alcance”, gracejou o poeta, alegando que ali era o lugar perfeito para ele viver.

Depois de zanzar pelo Anfiteatro Romano em Kom-al-Dikka e darmos com a cara na porta do Museu Greco-Romano (“fechado para reformas”, disse o guarda; aqui é baixa temporada e os sítios históricos melhor administrados estão todos meio que em obras), retornamos à orla, até o recomendabilíssimo restaurante Fish Market, onde eu necessitava tirar a barriga da miséria de carne e com peixe, claro (sou cuiabano, afinal, e o apelido dos cuiabanos – não sei se vocês sabem – é “papa-peixe”). Uma sensacional vista das proximidades do porto e do Forte Qaitbey deram a mim e à Egípcia do Crato o melhor final de tarde da Terra. O restaurante é genial: você seleciona peixes, camarões, frutos do mar fresquinhos e escolhe o modo de preparo. Depois de prontos, os pratos são servidos com saladas e mezzes, e tudo a um preço baixinho, baixinho. Paz na terra aos homens de bom gosto e apetite. Daí o sol se afogou no Mediterrâneo sem salva-vidas que o resgatasse (ao menos para aquele dia) e nós rumamos para alguns drinques mais no bar Cape D’Or de Alexandria, muito mais charmoso, com seu balcão de cobre e de mármore, do que seu homônimo no Cairo. Depois disso, o mergulho alvo nos lençóis do Hotel Union e o som das ondas fornecendo o ritmo ideal para o amor e para o fim irrevogável das maldições.

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]