amores expresos, blog do Joca

Tuesday, June 5, 2007

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL V

Andar de camelo nas dunas do Saara pode ser uma experiência tão marcante quanto um grande caso de amor: só dói quando acaba.

A simpatia que esses bichos irradiam, entretanto, foi plenamente confirmada. O meu camelo (cujo nome alguém me disse mas eu não entendi; adotei então o nome de Marcelo) parecia querer me revelar algo muito importante, pois mastigava e babava o tempo todo, ameaçando volta e meia dizer alguma coisa. O que seria? Uma história de amor entre camelos? Ou estaria querendo me fornecer o paradeiro da Egípcia do Crato, a terrível espiã francesa e notória especialista no sumiço de narizes de Esfinges e da estátua de 90 toneladas de Ramsés II da Midan Ramsés? Seria Marcelo, o camelo, uma mirisolette disfarçada? Minha paranóia deu o breque: e se tudo aquilo tudo fosse uma tramóia de Hosny El Ashmony & as mirisolettes para terroristicamente detonar com minha historinha de amor? Acabei ficando na dúvida e a única certeza que tive foi a de que camelos vivem apenas 20 anos, do mesmo jeitinho que o pobre Tuthankamon ou Álvares de Azevedo. Pobres das almas românticas dos camelos, faraós e poetas das Arcadas, esses defuntos precoces e jovens permanentes!

Depois de duas horas no lombo do bicho e de ver as pirâmides de todos os ângulos possíveis e impossíveis, eis que surge a Esfinge. Da Esfinge a melhor coisa que disseram foi que “vê-la é igual conhecer uma personalidade da TV em carne e osso” – rochas e areia, neste caso – “ela é sempre menor do que a imaginamos.” Das pirâmides, a melhor coisa foi dita pelo cara que alugava camelos: “Very big, very old.”

Eu pensava em pedir à Esfinge que ela me contasse uma história de amor, quando minha visão foi tapada por um milhão de sombrinhas multicoloridas das turistas japonesas despejadas pelos ônibus. Acabei desistindo de tudo e de lá retornamos ao ponto de partida no favelão de Giza, com a garotada correndo atrás de meu camelo e gritando “Cowboy! Cowboy!”, na expectativa de que eu abrisse a torneirinha de dólares. Tadinhos. Morreram de sede ali: nada de verdinhas em pleno deserto.

Depois de apear do Marcelo (descer de um camelo pode ser perigoso que só: basta se distrair na hora do movimento de montanha-russa que ele faz quando ajoelha as patas dianteiras e babau: sua dinastia faraônica terminará em você mesmo), me aguardava Hosny El Ashmony, o taxista trapaceiro & mirisolette militante, provavelmente com mil artimanhas calculadas para me empobrecer ainda mais. De lá seguimos para Mênfis, onde eu ansioso esperava que arqueologistas ingleses ou franceses (mais provavelmente americanos) tivessem descoberto nos últimos tempos a tumba secretíssima de um faraó desconhecido da última dinastia chamado Elvis I (imaginem a bela máscara mortuária com seu topete proeminente), mas que nada, Mênfis é uma decepção completa. Só não foi tão grande assim pelo fato de encontrar por lá a estátua de 90 toneladas de Ramsés II, aquela que ficou por 50 anos assistindo o engarrafamento do centro do Cairo como se fosse um guardinha de trânsito super-nutrido. Quer dizer que a gigantesca estátua não havia sido roubada pela Egípcia do Crato? Teria a espevitada espiã e femme fatale de carteirinha se regenerado? Era o que eu precisava descobrir com urgência.

Derrotado por minha renitente sovinice, Hosny El Ashmony desistiu das trapaças e me contou da dificuldade de pagar escola particular para suas duas filhas pequenas (“3.000 Libras Egípcias por ano, uma dureza. Mas fazer o quê? O ensino público aqui é uma droga”). Hosny desistiu também, nesse momento de intercâmbio de nossas experiências paternas internacionais, de adotar a amedrontadora voz de narrador de “Twilight Zone” que utilizara até então para falar dos sítios arqueológicos que visitávamos. Hosny El Ashmony afinal provou ser um sujeito legal.

A última vez que Hosny adotou sua voz de narrador de filme de horror foi na entrada de Saqqara (“S-a-q-q-a-r-a-a-a-a-a”, Hosny disse de maneira soturna, repetindo os “a” como se fosse o som de uma porta de tumba rangendo ao ser aberta). A 30km ao sul do Cairo, essa foi a parte mais deliciosa do passeio. Em pleno Deserto Ocidental e contornado pela área de cultivo do Vale do Nilo, com 7km de extensão e pouco visitada pelos turistas, Saqqara passou aquela sensação de isolamento aguardada desde que pisei no chão empoeirado do Aeroporto Internacional do Cairo. O lugar é formidável desde a entrada, o Serapeum, uma sequência de colunas em forma de uraeus, aquela cobra de cabeça larga que representa a deusa Wadjet, protetora dos faraós. Saqqara foi o principal crematório do Egito Antigo por 3500 anos, além de reunir um complexo sistema de necrópoles. Ou seja, eu estava no meio de um cemitério gigante, pronto para que a maldição dos séculos caísse sobre minha cabeça calva e chamuscada pelo sol.

Mas que nada: caminhar a esmo pelo areião em silêncio completo, a não ser pelo som do vento, foi uma bênção, assim como ver ao longe o círculo verde do horizonte de plantações às margens do Nilo e de seus afluentes. E daí conhecer a magnífica Pirâmide de Degraus do faraó Zoser, o mais antigo monumento de pedras feito pelo homem (2650 AC). É algo que não acontece toda segunda-feira, convenhamos. Depois disso, bater perna pelas tumbas e outras pirâmides e ficar olhando os beduínos cochilando à sombra dos camelos e os vira-latas, únicos habitantes das pirâmides nos dias de hoje.

Foi então, no zênite do final da manhã que eu vi, qual miragem flamejante no topo da pirâmide de Userkaf, a silhueta sexy da Egípcia do Crato em pose de desafio. Desta vez ela não me escaparia.

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]