amores expresos, blog do Joca

Thursday, May 31, 2007

GRÃOS-DE-BICO

Vinte dias fora de casa e já começo a sonhar com chuva e silêncio. Mandei as favas às favas, as lentilhas catar coquinhos, aos gergelins só digo não e não, em vez de sim e sim, e aos grãos-de-bico, bem, que virem seus bicos para o outro lado, não para o meu.

Começo a sentir saudades de minha própria comida, aquela que eu mesmo faço. Começo a sentir saudades do tempo em que sentia saudades da comida de minha mãe.

Esta noite acordei, incomodado com o calor que começou a se acentuar de maneira insuportável nos últimos dois dias. Fiquei parado na janela, tentando capturar alguma brisa noturna, mas nada de brisa, apenas um bafo quente vindo de fora. A cidade estava em completo silêncio. Para onde foram os táxis buzinando e as pessoas berrando e os muezzins rezando o tempo todo?

Enquanto suspeitava da proximidade de uma hecatombe vinda dos lados de Gaza ou do Golfo, comecei a ouvir, vinda de muito longe e do meio da escuridão, talvez de uma outra rua ou de um outro bairro ainda mais distante, bem baixinha, quase inaudível, uma voz que repetia, incessantemente, “Pamonhas, pamonhas de Piracicaba.”

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Os funcionários do Odeon Palace Hotel já desistiram de pedir baqshish e olham para mim com uma certa tristeza. Wael, o recepcionista da tarde, interrompe as aulas de árabe que está dando a um amigo grego em pleno saguão e me vê passar, cabisbaixo, os olhos inundados d’além mar.

Ele não tem idéia de como uma picanha faz falta.

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Wael é um dos caras legais que conheci, assim como o Dr Samir e seu amigo Emil, o joalheiro, ou o Amr, garçom do Café Cilantro e candidato a escritor. Até mesmo marquei de sair com Amr e seus companheiros, autores da novíssima geração egípcia de escritores. O Cilantro é um café bacana diante da The American University in Cairo, a universidade dos ricos locais e estrangeiros fundada em 1919 e que ocupa um prédio em estilo neo-islâmico na Midan Tahrir. Dentro do campus (uma aprazível villa com jardins e palmeiras onde se escarrapicham bem fornidos jovens representantes do neo-imperialismo atual) existe uma senhora livraria, onde me escondo de vez em quando da infinita algazarra (palavra muito apropriadamente vinda do árabe) das ruas poluídas do Cairo.

Outro cara bacana que encontrei dia desses foi um farmacêutico que nem ao menos arranhava grotescamente o inglês, feito eu. Ele tomava uma limonada sentado na grade do metrô da Estação Nasser, quando lhe perguntei a direção de Zamalek. Para chegar a esse verdejante bairro que fica na ilha de Gezira bem no meio do Nilo é necessário atravessar uma ponte, obviamente. Eu já tinha ido a Zamalek diversas vezes (é o posto avançado dos tempos em que os ingleses cagavam regras por aqui e onde cresceu, nos anos 1940, o intelectual palestino Edward Said), mas estava perdido noutra parte da cidade e no meio da balbúrdia (será que “balbúrdia” também vem do árabe?).

O rapaz limpou os beiços e me acompanhou, feliz em poder ajudar. Nos quase quarenta minutos de caminhada, foi mostrando um souq chamado Balouc nos becos estreitos de uma favela sob a ponte 26 de Julho, com pessoas vendendo roupas coloridíssimas em ruas totalmente enlameadas, ahwas lotados de velhos e moços pipando seus shishas e cordeiros inteiros pendendo dos ganchos nas calçadas diante dos açougues. No final do trajeto, descobri que meu novo amigo era farmacêutico e estava indo para o trabalho em Zamalek (ele mostrou seu cartão, apontando a serpente de Esculápio. Depois disse em francês “pharmacie”).

Até então parecíamos apenas dois mímicos fracassados em nossa tentativa inábil de descrever este trecho sujo da cidade. Deixei-o, agradecido, em frente ao Marriott Hotel, que hoje ocupa um palácio feito em 1869 pelo Khedive Ismail para os festejos de inauguração do Canal de Suez (ai!) naquele mesmo ano.

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Há outra coisa a unir meus amigos Wael, Dr Samir, o joalheiro Emil, o garçom-escritor Amr, o farmacêutico andarilho anônimo e até mesmo o nobre Khedive Ismail, além do fato de serem egípcios.

Eles não têm a menor idéia de como uma picanha faz falta.

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Os egípcios comem em média 24kg de carne por ano, ou seja, míseras 6 gramas diárias, o que deve equivaler mais ou menos àqueles pedacinhos de carne moída que despencam do kibe no prato quando você está em seu restaurante libanês predileto aí no Brasil (o meu é o Cedro do Líbano, na Rua Pamplona em frente ao Carrefour, mas também gosto muito do Jahber da Mourato Coelho, ambos em São Paulo. E aprecio igualmente aqueles árabes do Largo do Machado, no Rio).

O modo como a culinária egípcia utiliza a carne já é indicativo da rareza da iguaria. Koftas e kibes usam carne moída (geralmente de cordeiro ou de frango) misturada com farinha de trigo. Kebab são pequenos (minúsculos, de acordo com minha aptidão carnívora) nacos de carne de cordeiro ou de veado. Há outras aves, codornas e pombos, que são servidas recheadas com arroz, amêndoas e grãos, mas ainda não criei coragem para isso. Pombos? Nãnãnã (curiosidade: “nãnãnã” é como se diz em árabe “simsimsim”, o que pode significar que eles – ou seríamos nós? – são totalmente loucos). Além disto, patos e gansos são caros demais para o meu bolso lotado de piastras (os centavos egípcios). Nãnãnã (em árabe se diz “lálálá”, assim mesmo, cantarolando, quer dizer “nãonãonão”. É incrível como eles nunca afirmam “sim” ou “não” uma única vez. É sempre “lálálá” ou “nãnãnã”. Ênfase é o segredo do negócio)

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Cansado do racionamento de carne e do calor do deserto, resolvi pegar um trem no final de semana passado e ir até Alexandria comer peixe e em busca dos ventos mediterrâneos e dos rastros de Konstantinos Kavafis, E.M. Foster e Lawrence Durrell. Mas isso é assunto para um outro post.

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E que falta faz uma picanha.