amores expresos, blog do Joca

Saturday, June 9, 2007

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL VI

A Egípcia do Crato vencia as pedras pontiagudas da pirâmide de Userkaf com a sinuosidade de uma cobra, esticando suas longilíneas pernas de rocha a rocha e ladeira a baixo, até aterrissar na areia do Grande Deserto Ocidental. “Aterrissar” era precisamente o termo a ser usado, pois a espiã francesa era mesmo um estupendo caça-a-jato.

“O que você anda tramando, Egípcia do Crato?”, eu lhe disse, envolvendo sua cinturinha 38. Ela então virou para mim seu rosto esculpido sobre maxilares de suçuarana. Os olhos dissimulados de agente secreta internacional eu podia apenas imaginá-los, pois se escondiam detrás de Ray-Bans prateados. Ela também tinha sua cabeça nobre e bela emoldurada por um hegab com fios de ouro acesos pelo sol que me fizeram esquecer por um momento as sevícias e trapaças de que era capaz.

“Passeando, Terron. Me aposentei, ao menos temporariamente”, ela sussurrou, com seu sotaque francês de Barbalha. “E eu poderia até dizer que você caiu das nuvens, se aqui tivesse alguma nuvem. Ando carente de companhia masculina perspicaz, nesta terra de mouros.”

Eu, perspicaz? Minha paranóia apitou feito o Arnaldo César Coelho: a Egípcia do Crato estaria mancomunada com os leitores do TodoProsa, a revista Veja e Reinaldo Aze(ve)do? Eu não conseguia imaginá-la, com todo aquele charme dilapidado nas ruas de Paris e de Juazeiro, como mais uma mirisolette grotesca. Não, eu não queria acreditar nessa possibilidade.

“É mesmo? Tamos aí. O que tá pensando fazer?”, falei.

“Reservei uma suíte com vista para o Mediterrâneo, em Alexandria. O Turbini sai hoje, às 9h30. Que tal vir comigo?”, ela disse, e quando esse convite suspeito caiu de seu lábio inferior espesso e convidativo como um bife tenro, não tive escapatória. E muito menos gostaria de ter.

“O que você acha? Tou com motorista me esperando. É só passar no hotel e pegar a mochila. Quer carona?”

“E o que você acha? Eu sabia que adivinharia todos os meus desejos, Joquinha”, ela falou, sacando o Ray-Ban e piscando para mim. Seus olhos castanhos prometiam a mais irrestrita revogação de qualquer praga.

*

O Turbini é o melhor entre os trens que percorrem o trecho Cairo-Alexandria, com poltronas largas e limpinhas que fazem a gente esquecer por 2h40 que está no Egito. Tudo funciona, o trem anda e ninguém enche meu saco, como antes havia enchido o tiozinho das bagagens na Estação Central da Midan Ramsés, implorando por baqshish após ter me dado informações que não solicitei. A estação também é muito bonita, lembrando algumas estações de trens brasileiras, e sou acometido por irreparáveis crises nostálgicas toda vez que sento no banco de uma delas e fico observando as pessoas chegando e partindo. Deve ser porque sou neto de ferroviário (meu avô espanhol, Juan José Terron Fernández, era maquinista da FEPASA em Marília, interior de São Paulo) e também órfão de nosso sistema de trens para passageiros, cuja extinção considero uma prova (apenas uma) da total estupidez dos administradores públicos brasileiros. Anfã: os trens de passageiros do Brasil partiram e nunca mais voltaram às estações.

Eu lamentava tais cousas e apreciava as palmeiras correndo junto à paisagem e os carros mandando bala na Desert Road, que segue paralela aos trilhos até Al-eksandEria (é como os árabes daqui pronunciam o nome dessa cidade, berço do cosmopolitismo do país). Aproveitava também para tirar umas casquinhas da Egípcia do Crato, acariciando seu cotovelo lânguido com meu pobre cotovelo lanhado de escritor fedido e mal pago. A idéia consistia em: se aquele cotovelinho alimentado à base de Nivea curtisse a aparência boêmia e abalconada do meu, eu estaria feito.

Afinal, à nossa frente estava Alexandria, cidade às margens do Mediterrâneo fundada por Alexandre, o Grande (em 332 DC) para rivalizar com Roma. Era certo que nosso destino nos prometia um amor grandioso, ao contrário do histórico de maldições da cidade, palco da tragédia pré-shakesperiana de Cleópatra e Marco Antonio. Eu, na realidade, não me preocupava apenas em ver o Pilar de Pompeu ou o Anfiteatro Romano em Kom-al-Dikka (o único em todo o Egito, descoberto em 1965 quando cavavam as fundações para a construção de um edifício). Apesar de saber que ir para Alex em busca do clima presente no “Quarteto de Alexandria” de Lawrence Durrell ser a mesma coisa que ir à Londres na tentativa de ver Mary Poppins no céu, era isto mesmo que eu queria, o cheirinho deixado por aquela tradição literário-decadentista.

Ao chegar na estação, pegamos um táxi e seguimos para a orla. No caminho, a imponência intacta do Cecil Hotel, cenário do “Quarteto” de Durrell e QG do serviço secreto britânico nos tempos doirados, o que incendiou os brios da Egípcia do Crato: “Pfuá!”, ela assoprou com desprezo seu biquinho francês. O lugar também ficou célebre por hospedar Somerset Maugham, Noel Coward e outros bichos. Para minha surpresa e a de meu ego, porém, o táxi seguiu em frente mais 50 metros, brecando diante do Hotel Union, constelações inteiras abaixo de seu vizinho Cecil. “A coisa tá feia até mesmo para espiãs francesas, meu caro”, disse a Egípcia do Crato, com seu sorriso lúbrico já mordendo o que minha imaginação ainda alimentava. No quarto, a surpresa: o hotel estava completamente vazio e nos deram uma suíte com sacada, cuja vista permitia ver a baía de ponta a ponta, do Forte Qaitbey (construído no local onde ficava o célebre Farol de Alexandria) à Bibliotheca Alexandrina (não a antiga, a nova, inaugurada em 2002). E a cama era de casal.

Dependurado qual um escritor do século XX naquele balcão iluminado pelo sol e observando de modo incansável a orla mediterrânea de Alexandria (que já foi injustamente chamada de uma “Cannes com acne”), eu me sentia nada mais nada menos do que o máximo.

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]