amores expresos, blog do Joca

Tuesday, June 5, 2007

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL IV

Eu perscrutava os olhos dourados de Tuthankamon em busca de respostas ou ao menos de uma piscadela de compreensão que fosse.

Naquele momento, um pouco depois do bando de turistas japoneses nos deixar a sós, pude então ouvir o que parecia ser um sussurro trazido pelo vento do deserto. Ou seriam fiapos de uma voz esgarçada cuspida pelo passado distante?

“Eu não cheguei a amar”, a voz rouca dizia, “Não tive tempo.”

Olhei para todos os lados e confirmei que não havia mais ninguém na sala, além de mim mesmo e de Tuthankamon, representado por sua jovial máscara mortuária de ouro maciço.

“Morri muito cedo, amigo”, Tuthankamon continuou, “não deu nem ao menos para me apaixonar. E você sabe como são os adolescentes: estão interessados apenas em carros e em velocidade.”

“Carros e velocidade?”, repeti, meio incrédulo e sentindo-me um bocado solitário ali, conversando com aquela máscara vazia que bem podia ser o capacete de um extravagante piloto egípcio de Fórmula 1.

“Exato. No Egito dos faraós não era muito diferente dos dias de hoje. Eu me amarrava em pilotar uma charrete a 100km por hora na Avenida das Esfinges, lá em Luxor. Certo dia, fiz uma cagada na direção. A charrete capotou e machuquei a perna. Daí a ferida infeccionou e pronto: eis-me aqui papeando com o amigo escriba, 3 mil anos depois.”

“Que chato. Na plaquinha aí embaixo diz que você tinha só 19 anos. Sinto muito por isso, Thutinha.”

“Tá tudo bem. Eu gosto daqui. Volta e meia aparecem umas minas gostosas usando uns vestidos curtinhos. Dá pra ver bastante coisa deste ângulo. Pena que não vou poder te ajudar com a história de amor. Ei, por que você não pede ajuda pra Esfinge, lá em Giza?”

“Pra Esfinge?”

“Isso aí. A Esfinge sempre tem boas histórias pra contar”, falou Tuthankamon. “Agora peço desculpas pro amigo, vou tirar um cochilo. Antes que apareçam mais japoneses, se é que me entende.”

“Entendo, claro. Prazerzão e boa soneca.”

“Valeu. E boa sorte com a sua história”, disse Thutinha, recolhendo-se ao seu mutismo de sarcófago.

Fiquei em silêncio por algum tempo também, apenas ouvindo o zumbido das moscas rodeando as múmias reais do Egyptian Museum. Eu precisava urgentemente maneirar na mistura de Tramal 50 com cerveja.

*

Naquela mesma noite liguei para Hosny El Ashmony, um taxista recomendado pelo hotel, e, no comecinho da manhã seguinte, rumávamos ao Platô de Giza para ver as pirâmides e a Esfinge.

Faço um pit-stop imaginário nesse passeio para falar de certa aflição que tem me acometido: o Egito é o inquestionável campeão mundial do clichê turístico, como vocês sabem, e o sem número de atrações existentes por aqui (só na cidade do Cairo são mais de 500) faz com que a gente tropece em sítios arqueológicos em todo e qualquer lugar que pise. Como nunca antes estive num lugar onde o peso da História fosse tão onipresente, confesso minha cabreirice inicial e já superada em sair de meu papel costumeiro de turista acidental (“Viajar, perder países”, escreveu Pessoa) e programar alguns passeios mais tradicionais.

Ocorre que o livro que estou planejando não tem nada ou tem muito pouco a ver com as encarnações passadas da cidade do Cairo (se é que é mesmo possível distinguir um Cairo exclusivamente contemporâneo), daí o conflito entre minha necessidade de conhecer melhor as nuances atuais da metrópole e conhecer outras atrações como, por exemplo, a da Grande Pirâmide de Quéops, única sobrevivente das Sete Maravilhas do Mundo Antigo.

Como vocês já podem imaginar, porém, o inigualável poder magnético das pirâmides destruiu minhas dúvidas por completo.

*

As pirâmides serviram também para destruir com algumas idéias pré-concebidas que eu tinha.

Hosny El Ashmony pilotava seu possante Daewoo pela Pyramid Road, uma avenida cercada de favelas nos subúrbios da cidade do Cairo, quando, à minha direita e detrás dos postes de luz e dos barracos empilhados no horizonte, surgiram as pirâmides de Quéfren, Miquerinos e Quéops. Em questão de segundos aquela imagem de cartão postal das pirâmides no meio do deserto que existia em minha cabeça implodiu completamente, como se fosse a de um prédio construído pelo Sérgio Nahas.

A região onde as pirâmides ficam está dentro da cidade do Cairo há algumas décadas. Para se fazer idéia, os primeiros restaurantes com vista para elas surgiram já nos anos 1940, e as fotos de cartão postal que ficaram registradas no imaginário mundial pertencem à década de 1920, auge das descobertas da egiptologia e início do boom turístico no Egito. Foi naquele período que aristocratas e nobres europeus viajavam pra cá, trazendo seus carrões em transatlânticos através do Mediterrâneo e cravando na nossa memória a idéia de sofisticação ligada ao Egito. Basta nos dias de hoje, porém, olhar para a breguice inigualável do restaurante Christo (que oferece, além da privilegiada vista para as pirâmides e para o favelão, peixe frito e shows de dança do ventre), para ter certeza de que os bons tempos não voltam mais.

E olhe que a situação parece ter melhorado muito desde 2004, quando o Ministério do Turismo decidiu isolar as pirâmides da população do platô de Giza com uma muralha. Assim, os camelôs, “guias” e donos de camelos que empesteavam o local, assombrando os turistas, foram obrigados a ficar do lado de fora.

Enquanto eu remoía essas considerações, meu piloto Hosny El Ashmony tramava contra meu bolso ao celular, provavelmente armando com seus comparsas alguma maneira de me levar à falência. Hosny, porém, não sabia patavinas (assim como todos os malandros do Egito) a respeito do conteúdo do guia “Lonely Planet”, que eu tinha lido de cabo a rabo mais de uma vez. Eu estava preparado. Bem, ao menos assim pensava. Foi então que Hosny El Ashmony, o mala sem alça, perguntou se eu queria conhecer as pirâmides “pelo lado de fora ou pelo lado de dentro”. Epa! Então quer dizer que o “Lonely Planet” não dava todas as dicas? Seria uma pegadinha? Pensei um pouco nas aflitivas descrições do interior da pirâmide de Quéops feitas por viajantes claustrofóbicos e respondi “pelo lado de fora”.

Em poucos minutos e após árdua negociação nos arredores das pirâmides, eu rebolava sobre a corcova de um camelo, atravessando o favelão com garotinhos correndo atrás de mim e berrando “Cowboy! Cowboy!” Alguns minutos e estávamos no areião do deserto. Entramos, pelo que entendi, por uma porta “alternativa” dos fundos, após Abdul, o guia, molhar a mão do segurança. Depois de um bom tempo e de algumas dunas escaladas, estávamos afinal distantes do burburinho dos malacos e dos turistas e ouvindo só o vento. Foi nesse instante que Abdul se aproximou de mim galopando e quebrou o encanto da coisa toda com uma brincadeirinha para descontrair: “Welcome to Alaska!”, ele disse.

Eram 10h da manhã e o sol e o meu humor não estavam para piadas prontas.

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]