amores expresos, blog do Joca

Thursday, May 31, 2007

GRÃOS-DE-BICO

Vinte dias fora de casa e já começo a sonhar com chuva e silêncio. Mandei as favas às favas, as lentilhas catar coquinhos, aos gergelins só digo não e não, em vez de sim e sim, e aos grãos-de-bico, bem, que virem seus bicos para o outro lado, não para o meu.

Começo a sentir saudades de minha própria comida, aquela que eu mesmo faço. Começo a sentir saudades do tempo em que sentia saudades da comida de minha mãe.

Esta noite acordei, incomodado com o calor que começou a se acentuar de maneira insuportável nos últimos dois dias. Fiquei parado na janela, tentando capturar alguma brisa noturna, mas nada de brisa, apenas um bafo quente vindo de fora. A cidade estava em completo silêncio. Para onde foram os táxis buzinando e as pessoas berrando e os muezzins rezando o tempo todo?

Enquanto suspeitava da proximidade de uma hecatombe vinda dos lados de Gaza ou do Golfo, comecei a ouvir, vinda de muito longe e do meio da escuridão, talvez de uma outra rua ou de um outro bairro ainda mais distante, bem baixinha, quase inaudível, uma voz que repetia, incessantemente, “Pamonhas, pamonhas de Piracicaba.”

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Os funcionários do Odeon Palace Hotel já desistiram de pedir baqshish e olham para mim com uma certa tristeza. Wael, o recepcionista da tarde, interrompe as aulas de árabe que está dando a um amigo grego em pleno saguão e me vê passar, cabisbaixo, os olhos inundados d’além mar.

Ele não tem idéia de como uma picanha faz falta.

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Wael é um dos caras legais que conheci, assim como o Dr Samir e seu amigo Emil, o joalheiro, ou o Amr, garçom do Café Cilantro e candidato a escritor. Até mesmo marquei de sair com Amr e seus companheiros, autores da novíssima geração egípcia de escritores. O Cilantro é um café bacana diante da The American University in Cairo, a universidade dos ricos locais e estrangeiros fundada em 1919 e que ocupa um prédio em estilo neo-islâmico na Midan Tahrir. Dentro do campus (uma aprazível villa com jardins e palmeiras onde se escarrapicham bem fornidos jovens representantes do neo-imperialismo atual) existe uma senhora livraria, onde me escondo de vez em quando da infinita algazarra (palavra muito apropriadamente vinda do árabe) das ruas poluídas do Cairo.

Outro cara bacana que encontrei dia desses foi um farmacêutico que nem ao menos arranhava grotescamente o inglês, feito eu. Ele tomava uma limonada sentado na grade do metrô da Estação Nasser, quando lhe perguntei a direção de Zamalek. Para chegar a esse verdejante bairro que fica na ilha de Gezira bem no meio do Nilo é necessário atravessar uma ponte, obviamente. Eu já tinha ido a Zamalek diversas vezes (é o posto avançado dos tempos em que os ingleses cagavam regras por aqui e onde cresceu, nos anos 1940, o intelectual palestino Edward Said), mas estava perdido noutra parte da cidade e no meio da balbúrdia (será que “balbúrdia” também vem do árabe?).

O rapaz limpou os beiços e me acompanhou, feliz em poder ajudar. Nos quase quarenta minutos de caminhada, foi mostrando um souq chamado Balouc nos becos estreitos de uma favela sob a ponte 26 de Julho, com pessoas vendendo roupas coloridíssimas em ruas totalmente enlameadas, ahwas lotados de velhos e moços pipando seus shishas e cordeiros inteiros pendendo dos ganchos nas calçadas diante dos açougues. No final do trajeto, descobri que meu novo amigo era farmacêutico e estava indo para o trabalho em Zamalek (ele mostrou seu cartão, apontando a serpente de Esculápio. Depois disse em francês “pharmacie”).

Até então parecíamos apenas dois mímicos fracassados em nossa tentativa inábil de descrever este trecho sujo da cidade. Deixei-o, agradecido, em frente ao Marriott Hotel, que hoje ocupa um palácio feito em 1869 pelo Khedive Ismail para os festejos de inauguração do Canal de Suez (ai!) naquele mesmo ano.

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Há outra coisa a unir meus amigos Wael, Dr Samir, o joalheiro Emil, o garçom-escritor Amr, o farmacêutico andarilho anônimo e até mesmo o nobre Khedive Ismail, além do fato de serem egípcios.

Eles não têm a menor idéia de como uma picanha faz falta.

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Os egípcios comem em média 24kg de carne por ano, ou seja, míseras 6 gramas diárias, o que deve equivaler mais ou menos àqueles pedacinhos de carne moída que despencam do kibe no prato quando você está em seu restaurante libanês predileto aí no Brasil (o meu é o Cedro do Líbano, na Rua Pamplona em frente ao Carrefour, mas também gosto muito do Jahber da Mourato Coelho, ambos em São Paulo. E aprecio igualmente aqueles árabes do Largo do Machado, no Rio).

O modo como a culinária egípcia utiliza a carne já é indicativo da rareza da iguaria. Koftas e kibes usam carne moída (geralmente de cordeiro ou de frango) misturada com farinha de trigo. Kebab são pequenos (minúsculos, de acordo com minha aptidão carnívora) nacos de carne de cordeiro ou de veado. Há outras aves, codornas e pombos, que são servidas recheadas com arroz, amêndoas e grãos, mas ainda não criei coragem para isso. Pombos? Nãnãnã (curiosidade: “nãnãnã” é como se diz em árabe “simsimsim”, o que pode significar que eles – ou seríamos nós? – são totalmente loucos). Além disto, patos e gansos são caros demais para o meu bolso lotado de piastras (os centavos egípcios). Nãnãnã (em árabe se diz “lálálá”, assim mesmo, cantarolando, quer dizer “nãonãonão”. É incrível como eles nunca afirmam “sim” ou “não” uma única vez. É sempre “lálálá” ou “nãnãnã”. Ênfase é o segredo do negócio)

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Cansado do racionamento de carne e do calor do deserto, resolvi pegar um trem no final de semana passado e ir até Alexandria comer peixe e em busca dos ventos mediterrâneos e dos rastros de Konstantinos Kavafis, E.M. Foster e Lawrence Durrell. Mas isso é assunto para um outro post.

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E que falta faz uma picanha.

Tuesday, May 29, 2007

LENTILHAS

Há diversas fontes conflitantes sobre a população da cidade do Cairo, apesar de o IBGE deles, o CAPMAS, estar preparando novo censo a ser divulgado ainda em 2007. De acordo com as primeiras informações extra-oficiais (a fonte é a revista mensal Egypt Today), os cairotas são em torno de 20 milhões (sendo que a população do país é de 76.486,426 milhões de pessoas).

Esse número não é suficiente para dar ao Cairo o cetro de cidade mais populosa do planeta, mas assegura sua posição de primeira do ranking de maior densidade demográfica, com áreas habitadas por 2.000 pessoas por hectare, ou seja, com meros 5 metros quadrados ocupados por cada cidadão.

Some esses índices aos alarmantes níveis de poluição, acrescente áreas totalmente desprovidas de quaisquer indícios de vegetação, tempere com a areia do Saara que inunda a cidade nas tempestades anuais chamadas de Khamasin (“As Cinquentas” em árabe, assim chamadas porque ocorrem 50 dias antes da Páscoa copta -- na mais poderosa delas, registrada em 2004, os ventos eram de 80 km/h, e deixou 33 mortos), ferva a 40 graus celsius (média da temperatura neste início de verão) e pronto: o caos é dono e senhor deste lugar chamado Entropia.

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O prefeito de São Paulo Gilberto Kassab e sua usina de idéias brilhantes deveria criar um sistema de teletransporte que fosse acionado a cada vez que um paulistano dissesse ou pensasse “Não aguento mais o caos desta cidade”.

No preciso momento em que essa frase transtornada varasse o cérebro do paulistano de saco cheio e ensardinhado num vagão de metrô na hora do rush, ele seria imediatamente teletransportado para uma rua de Khan Al-Khalili, onde a mera menção à palavra “espaço” não tem lugar, e a sensação “espacial” é precisamente a de estar dentro de um vagão do metrô em São Paulo na hora do rush, com a diferença (que deve ser levada em consideração) que o seu pé estaria enfiado numa fossa estourada e que você seria obrigado a dividir seu quinhãozinho com jegues, pombos, cavalos, cabritos, táxis, ratos, egípcios e, last but not least, japoneses (bem, nós também temos japoneses no metrô de SP).

Depois de meia hora curtindo os olhares hospitaleiros dos fundamentalistas muçulmanos de Khan Al-Khalili (que murmurarão em seu ouvido frases indecifráveis em árabe provavelmente significando “Adoro explodir infiéis”) e mais apto para rever seus conceitos, o sabatinado paulistano seria devolvido ao vagão em pleno horário das 19h da Operação Tartaruga do metrô.

Ou não.

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A questão da arborização da cidade (o problema aqui no deserto não é desmatamento, como vocês podem prever) é ainda mais atroz. Há diversas opiniões a respeito da total desimportância que o cidadão do Cairo atribui aos espaços verdes, algumas delas cheirando até mesmo a psicologização barata, como a da “cairóloga” Maria Golia, autora do interessantíssimo, apesar de certas teorizações furadas, “Cairo, City of Sand” (The American University in Cairo Press, Cairo, 2004). Golia defende que o cairota abomina qualquer coisa que o faça lembrar de seu passado rural ainda tão próximo, e isto incluiria as preocupações paisagísticas com o espaço urbano da cidade.

Tenho minhas dúvidas quanto à boa procedência desse raciocínio, pois a alma rural do povo egípcio me parece totalmente viva e pulsante onde quer que se olhe: no sem número de carroças puxadas por jumentos e cavalos transportando hortaliças, legumes e carne pra lá e pra cá (uma visão impensável em boa parte das capitais brasileiras). Um exemplo: dia desses entrei num beco cercado de prédios em ruínas próximo à Midan Tahrir, o coração do Cairo urbano, e lá estavam dois pastores com suas quinze ou mais cabras. Pareciam exilados do bucolismo, os pobres pastores e suas cabras.

Tenho para comigo que a total falta de preocupação com o destino desta cidade e das pessoas que a habitam só tem uma razão: desgoverno. A situação é de tal maneira drástica que nem posso cogitar incompetência administrativa. O Caos, quer dizer, o Cairo está desgovernado desde 1981, quando Hosni Mubarak chegou ao poder. Ou seria desde 712 AC, quando a era faraônica começou a definhar? Cartas para a redação (jterron@gmail.com).

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Cansados de tentar plantar em vão no deserto, os cairotas inventaram os “chapéus de palmeira plástica” para revolucionar conceitos no paisagismo mundial. Explico melhor: são parafernálias feitas de plástico imitando as palmas superiores de uma palmeira e que são instaladas nos topos de postes dos bairros de subúrbio. À noite, quando os postes são acesos, as palmeiras plásticas brilham qual néon nas cores laranja, púrpura e – por que não? – verde.

Não, Kassab, nem ouse pensar nisso!

FAVAS

O prato típico do Egito de que mais gostei até agora é o fuul, que é a palavra árabe para fava. Os egípcios comem favas de tudo quanto é jeito, como mezzes (aperitivos), em sanduíches feitos com taamiyya (o falafel daqui, que são bolos feitos de favas amassadas temperados com ervas diversas e fritos) ou cozidos simplesmente com tomates e cebolas e temperados com pimenta síria, cominho, sal e limão.

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Esta última é a forma que são servidas as porções de favas no Cape D’Or, o melhor boteco daqui do centro do Cairo. Eu sou particularmente fascinado por botecos da Belle Époque, aqueles bares com jeitão de cafés, tetos altíssimos e belos móveis antigos. A frequência do Cape D’Or (que fica na Sharia Abdel Khalek Sarwat, quase na Talaat Harb) hoje em dia não tem mais a mesma exuberância de seus primórdios no início do século XX, mas ainda tem lá seus atrativos. Um deles são as mezzes servidas gratuitamente a cada Stella solicitada, basicamente porções de tomates, rúculas, queijo (um queijo fresco local chamado domiati cujo sabor lembra um pouco o da ricota), tremoços e favas. As favas do Cape D’Or são particularmente deliciosas e, se você beber algumas Stellas, sairá do bar sem a necessidade de jantar.

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A forma mais deliciosa do fuul até agora, porém, é a servida no restaurante Abou-el-Said (ou el-Seid ou mesmo el-Sid, pois já vi essas três grafias por aí). Amassado e misturado com azeite, alho e limão (assim como o babhaganush e o hummus) e temperado com cebolas e bell pepper (uma pimenta vermelha cujo nome árabe ainda não entendi e de sabor desconhecido para mim), é uma iguaria inigualável. Basta ir beliscando a pasta com pedacinhos de pão sírio torrado ou com taamiyya e seu lugar no paraíso está garantido.

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Dia desses mantive uma longa e agradável conversa no Cape D’Or com o dr Samir, uma rara exceção à simpatia interesseira da maioria dos cairotas. Pediatra, o senhor gordinho e calvo trabalhou por 3 anos em Trinidad-Tobago e estava acompanhado de seus amigos Emil, um joalheiro velhinho que tem loja no souq (mercado) de Khan Al-Khalili, o enclave medieval no centro do Cairo islâmico (o termo é impreciso, já que todo o Cairo é islâmico), e outro cujo nome não registrei e que generosamente me entupiu de alguns Belmont, o melhor cigarro egípcio. Dr Samir e os amigos se encontram todas as quartas no Cape D’Or para tomar algumas geladas e colocar a prosa em dia.

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Os três convivas do Cape D’Or são coptas, a variação cristã ortodoxa encontrada no Cairo. Em diversas ocasiões da conversa e depois de saber que eu vinha de família católica, pude perceber algumas ironias do dr Samir endereçadas aos muçulmanos. As diferenças religiosas aqui não são brincadeira e, cerca de um mês atrás, houve um confronto entre as duas facções que deixou dezenas de pessoas com ferimentos graves. O quebra-quebra foi iniciado pelos muçulmanos, que acusavam os coptas de terem iniciado a construção de uma igreja em terreno sagrado do Islam.

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Apesar da presença copta disseminada na cidade, muito além dos limites do bairro copta demarcados pelas muralhas da antiga Babilônia (uma área com a mesma idade e aparência semelhante a dos bairros antigos de Jerusalém), fundada pelos romanos 3 séculos DC, o Cairo é predominantemente muçulmano.

Na cidade existem 10 mil mesquitas em atividade, além de dezenas de milhares de zawayas, cantos de oração com capacidade de reunir centenas de fiéis. O problema é que cada uma dessas mesquitas e dessas zawayas é equipada com equipamentos de som altíssimos. Esses equipamentos são acionados 5 vezes ao dia com chamados à oração, (5 é o número de vezes que os muçulmanos rezam, começando ao raiar do dia -- às 4h30 da matina -- e culminando à noite, em torno das 21h30). Nesses horários, um muezzin em cada mesquita e cada zawaya canta trechos do Alcorão em altos brados hiper-amplificados que terminam por cobrir toda a cidade. Se eu consigo dormir? E você acha que alguém dorme no Cairo?

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A devoção religiosa do povo egípcio pode ser verificada pelo número impressionante de homens com calos escuros no meio de suas testas. Esses calos indicam o grau de fervor religioso de seus dono e quanto tempo de suas vidas eles dedicam a rezar de joelhos, com suas testas apoiadas no chão geralmente coberto por tapetes. E os muçulmanos rezam em qualquer lugar, no meio da multidão em movimento ou mesmo dentro do cybercafé.

Esta cidade de 1400 anos chamada Al Qahihra é mesmo um espetáculo de fé e persistência, e a forma com que ainda existe, equilibrando-se entre o deserto e a pujança do Nilo, entre a absoluta miséria de seu presente e a riqueza do passado faraônico, é apenas mais uma constatação da inquestionável vitória do absurdo sobre a realidade.

Monday, May 28, 2007

GERGELINS

Os cairotas pertencem àquela faixa um tanto obscura e indefinida das categorias humanas que fica entre a simpatia e a mais intransigente malice sem alça. São as pessoas mais grudentas que já tive a infelicidade de suportar, e nesse quesito talvez ganhem até mesmo dos brasileiros. Eu disse “talvez”.

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Os mais malas entre os malas são os malandros que trabalham com turismo no centro da cidade. Eles ficam zanzando pelas ruas à procura de gringos e então colam nas pessoas, seguindo-as até que consigam arrastá-las para uma de suas “agências”.

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O método de abordagem desses infelizes pode ser reconhecido pelo indefectível “Where are you from?” A única forma de se livrar de tanta simpatia e diligência é ignorá-las pura e simplesmente. Dia desses tive um diálogo interessante com um gordo que me seguia fazia horas.

O gordo foi chegando e segurou em meu cotovelo, dizendo: “Hello. Where are you from?”, pergunta que respondi com um seco “Thank you.” O gordo então emendou “Oh, que interessante, então você vem de um país chamado Thank You.” Eu olhei pra ele e disse “Sim, cuja capital se chama No Thanks.” O olhar do gordo então se iluminou e ele afinal parou de me seguir. Quando olhei para trás, ele estava parado na calçada e repetia incessantemente: “Muito boa. Essa foi muito boa...”

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Cerca de 25% da economia baleada do Egito é proveniente do turismo, daí o contingente gigantesco de pessoas espalhado pelas ruas do Cairo, procurando desesperadamente sobreviver de golpes e pequenas mutretas. Nas redondezas de qualquer sítio histórico é possível encontrar batalhões delas, o que acaba transformando qualquer visita a um lugar desses num tremendo pé no saco. É necessário negociar absolutamente tudo, desde o preço de uma garrafa d’água até uma corrida de táxi.

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Os táxis egípcios não usam taxímetro e o preço tem de ser combinado antes de se entrar no carro. “Funciona” mais ou menos assim: o taxista pára (não há necessidade de fazer sinal, pois ao caminhar na calçada você será abordado o tempo todo – às vezes podem até mesmo te seguir – ou quase será atropelado por eles) e do lado de fora você diz o bairro ou a rua que gostaria de ir e pergunta o preço. Daí começa uma árdua negociação, iniciada invariavelmente por ele, que vai propor um preço abusivo que será negado por você. Se o taxista se mostrar irredutível, é só dar as costas e ir embora. Em geral, o táxi aparecerá novamente ao seu lado um minuto depois, quando o taxista perguntará quanto você quer pagar. E então o negócio é chutar um preço razoável e entrar no carro fedorento, quase 10 minutos depois de o processo ter se iniciado. Vale lembrar que nem sempre o taxista fala inglês. Uma diversão. Que saudades do Ney.

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Os taxistas também têm o péssimo hábito de “sequestrar”os passageiros gringos, fazendo um caminho alternativo que passe por lugares importantes. Nessas horas eles incorporam o guia turístico e tentam explicar os monumentos (às vezes apelando para a mímica, o que pode ser particularmente desastroso numa cidade com o trânsito do Cairo), pretendendo com isto cobrar pelo “tour”.

No caso de o taxista ficar insatisfeito com o preço acordado, ele também poderá parar e recolher novos passageiros que estejam indo para o mesmo destino que você. Ou seja: o risco de seu sensível narizinho terminar debaixo das axilas fedorentas da gabbeyya de um muçulmano de 200 kilos é bastante grande.

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O problema maior dos táxis no Cairo nem mesmo é o preço, muitíssimo mais barato do que em São Paulo, por exemplo, onde táxi é um serviço caríssimo. Dia desses aluguei um deles para um passeio de cerca de 7 horas (um carro bacana, com ar-condicionado e tudo, e um motorista mala sem alça como todos os outros – falo mais dessa viagem depois) para ver as pirâmides de Gizah, Saqqara e Memphis (Saqqara fica a quase 30km do centro do Cairo) por 120 libras egípcias, o que deve dar em torno de R$43.

O grande problema do Cairo é que todo mundo, desde taxistas e garçons até funcionários de hotel e mendigos, quer enganar estrangeiros durante o tempo todo. E isso cansa qualquer candidato a otário.

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Existem mais de 20 milhões de carros circulando no Egito. Esse número aliado à total loucura rodoviária dos cairotas resultou no trânsito mais caótico do mundo. Uma gigantesca frota de renaults e fiats 147 caindo aos pedaços circula do raiar do dia até a noite, varando a madrugada com suas buzinadas estridentes. Os motoristas cairotas não respeitam nenhum sinal de trânsito e muito menos os policiais, que nos horários de picos procuram (ainda não estou certo se eles “procuram” fazer alguma coisa) organizar os cruzamentos. Para atravessar a rua, os pedestres não têm outra saída senão se aventurar no meio do tráfego de maneira absolutamente suicida. Ver um cairota atravessando o tráfego de uma grande avenida na hora do rush é mais emocionante do que final de campeonato.

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Uma das provas irrefutáveis de que o povo egípcio é completamente insano está na Midan Ramsés. É lá, no centro dessa pequena rotatória próxima à estação ferroviária central contornada por gigantescos minhocões unindo os subúrbios ao centro da cidade, que está um monolito representando Ramsés II*. A estátua de 90 toneladas foi trazida em 1955 de seu lugar de origem, o Templo de Ptah em Memphis, onde ficou por mais de 3000 anos, por ordem do presidente Gamal Abdel Nasser. E hoje o pobre Ramsés II é obrigado todo santo dia a testemunhar a barulhenta faina humana dos congestionamentos, sentindo dia a dia sua carne feita de rocha ser consumida pela poluição e pelo monóxido de carbono. É um verdadeiro crime de lesa-humanidade.

*Não está mais. Parece que caiu a ficha e recolheram o pobre Ramsés II para ser restaurado. Parece que em seu lugar colocarão uma réplica. Eu, porém, suspeito que tal sumiço deve ser obra da ardilosa espiã francesa, a Egípcia do Crato...

Friday, May 25, 2007

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL III

Na manhã seguinte, após as aulas de hipnologia que tenho tomado com o eminente professor Emil Kamel no campus da American University in Cairo situado na Sharia Mohammed Mahmoud, aproveitei o fato de estar na vizinhança e entrei no Egyptian Museum. Eu estava em busca de ser possuído por alguma entidade do Egito Antigo que me ditasse um livro, assim como aconteceu com Aleister Crowley. Ao contrário do “The Book of Law” resultante da sessão espírita ocorrida com o bruxo inglês, porém, eu precisava que a tal entidade me desse uma mãozinha e ditasse uma história de amor. Quem sabe Hathor, a deusa do amor e do prazer representada por uma simpática vaquinha, não me auxiliasse nesta empreitada? Afinal, mugir de amor deve ser muito melhor do que morrer de amor.

Eram tamanhas, as promessas que os 120 mil itens de egiptologia catalogados e escondidos sob o teto daquele enorme prédio cor de camelo quando foge, que até mesmo desapareceram as dores que meu Canal de Suez particular tem causado. A dor de dente passou, e então começaram as dores de cabeça para entrar no museu, que devem ser parecidas com dores do parto às avessas. Primeiro, um detector de metais. Depois, uma revista completa da mochila. E então, o raio-X. Somente nesse ponto descubro que terei de voltar ao jardim externo do museu para depositar câmeras de fotografia e de vídeo num guichê altamente suspeito. Uma dona gorda e simpática (aqui não tem esse negócio de anorexia, as gordinhas é que fazem sucesso) me deu um papelzinho encardido com um número em árabe em troca da moderna handycam que a produtora malvada me obriga a carregar pra lá e pra cá. Minha paranóia sambou: eu podia confiar na egípcia gordinha e simpática ou ela seria uma mirisolette disfarçada? Resolvi confiar. Eu não tinha mesmo outra saída para entrar no prédio.

Após os guardinhas de uniformes branco-encardidos bagunçarem novamente minha mochila, consigo entrar no museu. Logo de cara, no fundo do átrio, duas gigantescas estátuas representando o faraó Amenhotep III e sua mulher Tiy me dão boas vindas (“Welcome”, eles dizem em uníssono.) Considerei bom augúrio ser recebido por um casal cujo casamento esteja durando tanto tempo. Afinal Amenhotep e Tiy estão juntos desde 1390 AC. Isso sim é que é felicidade conjugal.

Depois de conferir a Paleta de Narmer (o faraó também conhecido por Menés e que unificou o Alto e o Baixo Egito, iniciando as dinastias faraônicas que duraram 3000 anos), subo correndo ao segundo piso para ver as salas dedicadas a Tutankhamon. Quando garoto eu era fascinado com a história do arqueólogo inglês Howard Carter e a de seu benfeitor, Lord Carnarvon. A maldição de Tuthankamon parece ser mais poderosa do que a maldição das mirisolettes, pois reza a lenda que todos os envolvidos na abertura da câmara do faraó em Luxor morreram nos anos seguintes à descoberta. Suspeita-se que a câmara fora envenenada para afugentar saqueadores de tumbas. Pus-me a pensar: será que o faraó com sua sabedoria divina poderia confundir aqueles nobres e bem intencionados colonizadores e arqueólogos com meros saqueadores de tumbas? Bem, basta conferir os tesouros egípcios no British Museum e no Louvre para perceber que Tutankhamon, apesar de jovenzinho, sabia das coisas. Uma breve anedota ilustrativa sobre o assunto e sobre o jeitinho egípcio de ser: em troca do portentoso e incalculável obelisco do período faraônico que enfeita a Place de la Concorde em Paris, o rei francês Louis-Philippe enviou em um relógio para ornamentar a entrada da mesquita de Muhammed Ali, no Cairo. O relógio quebrou durante a viagem e até hoje não foi consertado.

Foi nesse instante que me lembrei da intrigante presença na cidade da Egípcia do Crato, espiã, ladra e femme fatale juramentada. Eu sabia que a esculhambação característica dos egípcios é também responsável por outra grande piada: armazenados no porão do museu estão 150 mil peças valiosíssimas que nunca foram catalogadas ou exibidas. Há anos o presidente Hosni Mubarak vem planejando a construção de um museu definitivo nas imediações das pirâmides de Gizah que abrigue esses itens, mas essa parece ser outra brincadeira. Estaria a Egípcia do Crato em busca de novas riquezas da era dinástica para enfeitar algum museu do Primeiro Mundo, enquanto Mubarak cochila seu sono de beleza no Palácio Uruba? Era o que eu procuraria descobrir.

Diante da célebre máscara mortuária do faraó falecido precocemente (aquela que estampa capas de livros de história no período escolar), eu me perguntava onde tudo isto vai dar. Mas Tutankhamon continuou em seu silêncio de ouro e nada respondeu.

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]

Sunday, May 20, 2007

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL II

Como eu dizia, há uma evidente contrariedade entre a ruína externa e os faustos interiores dos prédios do Cairo. Sob essa ótica, o Cosmopolitan parece ser uma exceção, pois sua fachada magnífica esconde um interior totalmente deteriorado, com quartos imundos e banheiros assombrados pelo fantasma da hepatite. Pelo que compreendi, o prédio foi tomado pelos funcionários, que moram no hotel. Os gerentes e recepcionistas se revezam em seus papéis, causando tal confusão nos hóspedes (que combinam algo com um deles – o preço de uma diária, por exemplo – somente para depois ver o acerto desfeito pelo outro, pelo dublê ou sósia de gerente do momento). Como num filme de Kubrick, pelos corredores do hotel é possível ver crianças fazendo suas lições de casa em qualquer hora do dia ou da noite. Por outro lado, é simplesmente impossível localizar uma camareira e a coisa mais assemelhada a um aspirador de pó é o sistema de ar-condicionado central.

A situação era de tal maneira periclitante que eu esquecera completamente os leitores do Todo Prosa, a revista Veja, Reinaldo Aze(ve)do ou Mirisola & suas mirisolettes. Para falar a verdade, ao ver todas aquelas pessoas miseráveis dormitando pelos cantos das ruínas do Cosmopolitan Hotel, a única coisa que eu lembrava era do crítico e ganhador do Telecom Ricardo Lísias dizendo na Folha de S.Paulo que o projeto Amores Expressos não estava mandando ninguém para “a África negra” ou algo assim. Conferi no mapa e vi que o Egito e toda a sua maldição de faraós galopantes continuava no mesmo lugar, no oeste da África. Confesso que fiquei aliviado. Mas não muito. Eu continuava a existir.

Nesse exato instante o Canal de Suez em meu molar superior esquerdo me sinalizou que permanecia aberto e em plena atividade. Mandei para dentro uma cápsula de Tramal 50, o analgésico opióide receitado por meu dentista, Dr William B. e, totalmente insone, desci ao Kings Bar para mais algumas Stellas em total discordância com suas recomendações a respeito de misturar morfina com álcool. Afogado na fumaça dos cigarros baratos fumados pelos boêmios egípcios, saí delirando pelos corredores do hotel até inadvertidamente ir parar diante da porta do apartamento número 666. Foi somente então que me lembrei: entre tantos hóspedes famosos no passado, o Cosmopolitan também recebera o mago inglês Aleister Crowley, a auto-denominada Besta do Apocalipse. Babujando palavras incompreensíveis em árabe aprendidas com meu taxista predileto (shukran: “obrigado”; aasif: “desculpe”), desci à portaria e um dos duzentos ou trezentos gerentes do hotel me confirmou: era mesmo verdade que Crowley ali estivera nos anos 40. “Foi aqui no Cosmopolitan que ele escreveu ‘The Book of Law’, sir, segundo consta ditado por uma entidade maligna que o possuiu durante uma vista ao Egyptian Museum”, o gerente falou. Tremi na base. Nessa hora uma ventania danada fez rodar com violência a porta giratória do hotel e tive a impressão de ver sair por ela o vulto de uma antiga inimiga, a Egípcia do Crato. Seria mesmo ela? O que estaria fazendo no Cairo fora da temporada de espionagens? Resolvi, incontinenti, segui-la pelas ruas vazias espanadas pelo vento do Saara.

A silhueta delgada da misteriosa Egípcia do Crato movia-se mais rapidamente do que O Sombra, descendo veloz a Sharia Tahrir em direção à Corniche El-Nil, às vezes desaparecendo em meio às golfadas de areia e à nuvem de poluição noturna e surgindo de repente, até ser engolida de vez pela boca enevoada da entrada do Nightclub Scherazade. E então, de súbito, não mais a vi.

Uma ratazana saída de uma fresta do Cine Odeon galopava através da cinzenta Sharia Abdel Hamid Said, enquanto gatos aguardavam, mimetizados nas sombras.

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]

Saturday, May 19, 2007

A MALDIÇÃO DO COSMOPOLITAN HOTEL I

O Cosmopolitan é um hotel fundado em 1928 com endereço no centro do Cairo, região que viu seu auge na virada do século XIX para o século XX. Concentrado em torno à Midan Talaat Harb, esse pedaço da cidade está cheio de prédios art nouveau que nem de longe lembram os postais do tempo em que a Sharia Qasr-El-Nil era comandada pelo ainda imponente edifício da Bolsa de Valores, atualmente desativado.

Escondido numa viela e alheio ao rebuliço dos vendedores nas lojas, o Cosmopolitan Hotel está adormecido, sonhando com o passado glorioso. Seu frontão é formidável, com sacadas dando para um tranquilo passeio do centro onde vigora um ahwa (os cafés populares egípcios, frequentados essencialmente por homens que neles matam o tempo bebendo chás e fumando shishas, como é chamado o narguilé aqui) e dominado pela impressionante escadaria culminando em uma porta giratória daquelas que podem nos transportar no tempo: basta perder-se circularmente nelas e terminamos, meio tontos, dando de frente com a Belle Époque.

Sob o gigantesco lustre com milhares de lâmpadas acesas, não consigo ter nem uma mísera idéia a respeito do que pode ter dado errado na trajetória do Cosmopolitan. Observo o remendo grosseiro no uniforme puído do sujeito de noventa anos que carrega a minha bagagem no velhíssimo elevador com estrutura de ferro escuro e vidros decorados por iluminuras art nouveau. Noto quando sorri seus dentes apodrecidos, seus dedos imundos dos pés enfiados nas sandálias gastas. Vejo a palma de sua mão estendida em minha direção, implorando por bakshish. Enquanto saco algumas piastras de meu bolso furado, me antecipo (pois neste post estou apenas chegando ao Cairo e ao hotel e não tenho condições de refletir sobre o que ainda não vi) e começo então a refletir.

Uma das peculiaridades do Cairo é o contraste que pode haver entre a realidade externa totalmente degradada das ruas e a realidade interna dos prédios igualmente arruinados, que às vezes escondem ambientes tão luxuosos a ponto de nos desconcertar. A paisagem urbana desta cidade de 16 milhões de habitantes é assolada pelo desemprego, pela miséria e pelo caos e parece ter sido bombardeada anteontem e sempre. Tudo é coberto por um ubíquo pó cinza, até mesmo a vegetação, e às vezes bate uma ventania de areia daquelas de fechar os olhos e se segurar no poste mais próximo. Esgotos abertos nas calçadas cheias de pedintes, restos de comida jogados pelas esquinas, cheiros para todos os olfatos. Você dá dois passos e sente vontade de vomitar com o cheiro de alguma coisa apodrecendo, dá mais dois passos e é tomado pelo odor delicioso de alguma comida sendo preparada. Os perfumes decadentes da maior metrópole africana definitivamente não são para os sensíveis. E, contrastatando com essa algazarra, há os interiores opulentos de alguns lugares.

Um deles é o restaurante Abou-El-Said, no bairro de Zamalek. Enfiado numa rua inundada pelo esgoto na margem leste do rio Nilo, ao lado da Sharia Brazil e detrás de uma gigantesca porta medieval de madeira, o Abou-El-Said parece um palácio oriental, com seus grossos tapetes e móveis de estilo beduíno semi-ocultos pelas luminárias à meia-luz projetando sombras e desenhos por todo o ambiente. Suas poltronas são baixas, assim como as mesas, e os convivas nelas se estendem saboreando shishas, vinhos e cervejas (foi onde provei pela primeira vez a principal cerveja local, Stella, fabricada pela Heineken, e também o lugar em que paguei mais caro por ela, cerca de 20 libras egípcias, ou R$7. O preço normal nos botecos é de 7 libras, mais ou menos R$2,45). Ao fundo, bem baixinho para não incomodar, canções de Omm Kolthun, a maior cantora egípcia de todos os tempos, e outros temas de música árabe. E uma miríade de cheiros no ar, dominado pelo perfume suave de chá de menta exalados pelos shishas. Provo alguns mezzes (aperitivos) para abrir o apetite: babaganush (pasta de berinjela, tahine, ervas e azeite) com pão sírio torradinho (ambos conhecemos bem), mais kofta (conhecida no Brasil como kafta) e kebab (nacos de carne de cordeiro grelhados), além de deliciosos charutos de uva recheados com arroz e lentilha. Depois peço o prato principal, koshari. Típico do Egito, é um macarrão de semolina temperado essencialmente com arroz, grão-de-bico torrado, lentilhas e tomates. Uma delícia vegetariana que pode dobrar até o mais ferrenho dos carnívoros.

E então, após a festa dos sentidos promovida todas as noites pelo Abou-El-Said, retorno à realidade das ruas arrebentadas desta cidade coalhada de gente. E, claro, à maldição do Hotel Cosmopolitan.

[ TO BE CONTINUED / A SUIVRE ]

Thursday, May 17, 2007

SALLAM’ALAYKUM – A CHEGADA

O Aeroporto Internacional do Cairo se parece com qualquer outro aeroporto do mundo, daqueles em que os passageiros descem na pista para tomar um ônibus até o terminal. É apenas mais empoeirado.

Não se percebe nada de alienígena, até se entrar na fila da imigração e ver que a proporção de muçulmanos e beduínos vestidos em túnicas e usando turbantes e lenços aumenta cada vez mais e mais. Quando burocracia e desorganização principiam a tomar lugar e você vê na cabine 3 ou 4 sujeitos papeando como se não existisse uma fila com centenas de pessoas esperando por eles, pode ter certeza que você chegou a Al-Qaihrah, o nome árabe da cidade do Cairo.

Como o número de kalashnikovs à vista também aumenta em profusão, é aí que o visitante se lembra de que o Egito está sob uma ditadura há mais de 30 anos, e que a miséria e os níveis de desemprego têm feito a Irmandande Muçulmana (maior partido do país nos dias atuais, os fundamentalistas religiosos hoje dominam mais de 80% da bancada do parlamento, mesmo sendo um partido não reconhecido oficialmente) aumentar o cerco ao poder nas mãos do presidente Mubarak cada dia mais e mais.

Não foi difícil também me lembrar de que os ataques terroristas no país têm aumentado muito (antes esporádicos, após o ataque em julho de 2005 a turistas em Sharm El-Sheik que matou 64 pessoas, eles se tornaram mais frequentes), e que a polícia é corrupta e mal equipada, frequentemente acusada de tortura e abusos de poder contra cidadãos egípcios. E não somente.

Foi então que me lembrei dos leitores do TodoProsa, da revista Veja, do Reinaldo Aze(ve)do. Do Mirisola & suas mirisolettes.

Mas antes de enfrentar maldições & pragas, os terroristas ou até mesmo a polícia-montada em camelos de Mubarak, eu necessitaria sobrepujar a matilha de malandros que se dedicam a extorquir estrangeiros. Eles pululam por todo o Cairo, principalmente no centro por volta de Midan Talaat Harb, onde se encontram as agências turísticas, mas são particularmente abusados no aeroporto, que fica a 35 km da cidade e onde às 3h da manhã você inevitavelmente acaba refém de um desses caras. Para começar, eles cercam as pessoas de maneira totalmente agressiva e se a negociação for aberta pelo interlocutor, negando ou fazendo uma contra-proposta, você não mais conseguirá se desvencilhar deles.

Como eu estava completamente exausto com as 48 horas de viagem e as mochilas nas costas, optei por negociar um carro com preço fixo. Eu sabia através dos guias que essa opção sairia um pouco mais cara, mas os carros eram mais confortáveis e não existiria a menor possibilidade de a viagem ser transformada numa lotação. É que no Cairo, os táxis podem parar para outros passageiros que estejam indo na mesma direção que você. Podem inclusive lotar o carro ao seu bel prazer. Os táxis no Egito têm tamanha particularidade que escreverei em ocasião futura com mais vagar sobre o assunto.

Assim que acertei um preço (o inicial era 85 pounds egípcios e caiu para 60 – cerca de 22 reais -- suponho que daria para regatear mais, porém meu saco já não parava em pé), um camarada arrancou o carrinho de bagagens de minha mão e saiu circulando feito louco pelo aeroporto falando em árabe ao celular. Após ele sair fora do saguão e voltar (já levava uns 8 minutos ou mais pilotando perigosamente minha bagagem, que ameaçou cair do carrinho mais de uma vez), consegui retomar o volante do carrinho e dei-lhe um ultimato: “Eu preciso desse táxi para hoje, amigo, e não para amanhã.” Nesse momento o malandro parou e sorriu pra mim. Daí ele desligou o celular e me conduziu até um carro no estacionamento, me deu um recibo, pediu um bakhshish (uma gorjeta) e finalmente tomei o rumo do hotel. No volante do táxi, um velhinho voava, enfiando o pé pelas avenidas de asfalto brilhante e liso dos subúrbios do Cairo, passando por Heliopolis (elegante bairro imitando Paris construído pelo Barão Edouard Empain nos anos 20), rumo à Sharia Qasr-El-Nil, ao Hotel Cosmopolitan e também a maldições ainda mais poderosas e inesperadas.

Monday, May 14, 2007

OH, VIDA, OH AL-AZHAR*

Em Amsterdam chovia e fazia muito frio.

E ventava ainda por cima. Eu estava preparado para o frio, mas não para a chuva torrencial que despencava sobre aquela cidadezinha de bonecas. Não seriam pragas porém, àquela altura longínquas, que me impediriam de desvendar os becos e bravamente vencer as pontezinhas em arco de Amsterdam ou as ubíquas hordas de japinhas.

Aterrissei às 11h da manhã no aeroporto de Schiphol após 11h30 de vôo tranquilo, atravessei o gigantesco shopping center que é aquele lugar e tomei o trem para a Centraal station. Eu ainda não sabia do pé d’água do lado de fora e tinha diante de mim quase 10 horas para afastar a ziquizira.

E em Amsterdam chovia e fazia muito frio.

Depois de ensopar meu blazer e as barras das calças e após alguma relutância, comprei um guarda-chuva de 4 euros. A relutância se devia ao fato de que ele não seria muito útil em meu destino final, afinal não costuma chover muito no Saara ou no Sinai. O meu destino naquele momento, entretanto, não era o Saara ou muito menos ver in loco putas dançando nas vitrines (embora as tenha visto e quase chorado piedosamente por sua feiúra e tristeza rebolante), devorar um space cake ou queimar um marroquino golden ou fazer essas coisas que os turistas normalmente fazem em Amsterdam. O meu destino ficava bem entre a Prinsengracht e a Keizersgracht, no meio da Kerkstraat e se chama Lambiek Comics Shop, a livraria especializada em quadrinhos mais antiga do Velho Mundo, desde 1968 fazendo circular o que há de mais interessante no assunto.

E quando digo que eles têm de tudo por lá, pode crer que é TUDO, até mesmo as edições de Lourenço Mutarelli ou de Fábio Moon & Gabriel Bá publicadas pela Devir. Por falar nos gêmeos, a edição de “De:Tales” da Dark Horse era exibida com destaque, certamente devido à sua recente indicação ao Eisner Awards. E dá-lhe babar na estante dedicada às sensacionais e incompreensíveis edições da Oog & Blik, a editora criada pelo quadrinista holandês Jooste Swarte para publicar na Holanda tudo o que Drawn & Quarterly e Fantagraphics publicam no Canadá e EUA, mais uma penca de coisas saídas da ativa produção local de quadrinhos, como as graphic novels expressionistas de Luc De Groot.

Além de ser uma livraria com acervo tão grande e variado que exigiria mais horas do que eu dispunha para explorá-la, a Lambiek também é uma galeria de arte que comercializa originais e pôsteres em serigrafia numerados e assinados pelos maiores nomes dos quadrinhos atuais. As paredes da loja (que é dividida em duas alas, uma para a galeria e outra para a venda de álbuns) são cobertas por desenhos originais de Robert Crumb e outros luminares surgidos no underground da contra-cultura, mas hoje em dia centra fogo na divulgação dos novos mestres do comics alternativo, como Chris Ware, Daniel Clowes, Charles Burns, Gary Panter e Adrian Tomine. Uma serigrafia de Burns por 130 euros quase me fez cometer uma loucura no cartão de crédito. Respirei fundo, bisbilhotei pelas prateleiras de HQs alemãs, finlandesas e o escambau e terminei na estante da D&Q em busca de algo que conseguisse ler. Aquisições: “Monologues for the coming plague”, de Anders Nielsen, “Louis Riel”, de Chester Brown, “Ligne fragile”, de Lorenzo Mattotti e “King-Cat Classix”, antologia hardcover reunindo os 50 primeiros mini-gibis auto-publicados pelo norte-americano John Porcellino – uma jóia de simplicidade narrativa.

Depois dessa gloriosa experiência (que me fez pensar que as maldições haviam errado a mira), me enfurnei num pub para algumas Heinekens. E então o retorno à chuva e ao aeroporto de Schiphol. No trem, “esqueci” o guarda-chuva para que não aumentasse ainda mais minha bagagem de mão (os livros são pesados). Um senhor turco veio atrás de mim, perguntando se o guarda-chuva não era meu. Eu lhe disse que era sim, mas ele podia levá-lo, pois eu não precisaria de um guarda-chuva no deserto. O sujeito fez uma cara de cada-um-com-sua-loucura e deu no pé.

Depois disso, algumas horas mais de atraso em Schiphol, além de outras Heinekens. Na hora de embarcar, uma chateação: na rigorosa revista da bagagem de mão, descobri -- para meu terror -- que recipientes contendo líquidos não podiam ultrapassar 250 ml. A funcionária árabe sorriu pra mim, e depois jogou meu tubo de 255 ml de esterilizador de lentes de contato no lixo. “Sorry”, ela disse. No mesmo instante iluminou-se com néon em minha cabeça o parágrafo do “Lonely Planet” dizendo que era praticamente impossível achar produtos para lentes de contato no Egito. A solução foi argumentar, pedir. Implorar. Chamaram o chefe, um holandês baixinho. Quando, ao retirar as minhas lentes, eu disse que aquilo seria um grande problema para mim pois eu era quase cego, o sujeito num passe de mágica devolveu o produto à minha mochila. Também existe um “jeitinho” holandês e eu não sabia.

E afinal, às 3h30 da manhã e 48 horas depois de passar a chave na porta de casa, eu desembarcava no empoeirado aeroporto internacional do Cairo.

* Al-Azhar é uma das principais mesquitas do bairro islâmico do Cairo.

Saturday, May 12, 2007

TINHA UM SUCESSOR DE PEDRO NO MEU CAMINHO

Tudo parecia conspirar contra minha saída de São Paulo, até mesmo o Papa.

Na véspera da viagem, imerso numa onda vultuosa de padres, seminaristas, noviças, freiras, oh quantas batinas na Dr Arnaldo (o cheiro de naftalina era tal a ponto de suplantar o já tradicional perfume de hambúrgueres das Clínicas, região outrora conhecida por um odor rastaquera de rosas colombianas comercializadas por ali nas imediações do cemitério do Araçá, mas oh, os paulistas superam tudo, o cheiro de morte que as rosas têm foi substituído com vantagens pelo cheiro de vida dos x-tudo, oh capriche no queijo, o meu quero mal passado, faz favor, semi-inconsciente, sivuplê), e todas em direção ao Pacaembu na busca de Vossa Santidade, que daria um show de bola às 18h daquele dia 10 de maio, justamente algumas horas antes de minha partida para o Cairo, bem no caminho entre a nobre produtora que bancaria os guinéus nessa parada e meu barraco no morro das Perdizes. Tinha um sucessor de Pedro no meu caminho, no meu caminho tinha um sucessor de Pedro.

Oh, infâmia.

Compromissos cumpridos (alguns sim, outros não) e a poucas horas do vôo, toco a voltar para a desarrumação de malas atrasada de casa. E então surgem eles, os beatos de Pindamonhangaba, as vestais de Caraguatatuba, os coroinhas de Turmalina, Ibiapina e toda a América Latina.

Nunca vi tanta batina.

Enquanto sozinho eu nadava contra aquela correnteza de fé católica, minhas paranóias batucavam: primeiro foram os leitores do Todo Prosa, o Reinaldo Aze(ve)do e a revista Veja, agora são esses católicos tentando impedir minha adesão irrestrita ao Islam. Assim não dá!

Mas daí, para meu total êxtase, 12 horas após conseguir driblar os corolas & as churumelas, surgiu Amsterdam no meu destino.

Ou na minha conexão para o Cairo, como preferirem.

*

Mas antes da conexão em Amsterdam e de minha chegada ao Cairo, surgiu o Ney em minha vida.

Explico melhor: Ney é taxista.
Depurando a explicação: Ney é taxista e faz ponto ao lado de casa. Nos conhecemos do dia-a-dia, do reboque das baladas, dos expedientes sudarentos, da faina inexorável de segunda-terça-quarta-quinta-e-sexta-feiras.

Sempre papeamos, eu e o Ney, o que eu ignorava completamente porém era que Ney falava árabe com fluência. “Além de inglês e japonês”, ele me informa. “Sempre quis viajar pelo mundo, mas daí apareceram a Elisete e os dois pimpolhos. As viagens ficaram na lembrança e no estudo das línguas”, ele diz.

Nas idas e vindas na véspera de minha viagem, Ney me deu aulas gratuitas de árabe. “Ana bád uerrád bira”, ele me ensinou. Pronto, eu já sabia como pedir uma cerveja no Egito. “Ana ma’ endi massarín”, falou o Ney. Abracadabra: eu já sabia driblar os mendigos egípcios, dizendo que não tinha dinheiro. Combinei com meu amigo taxista de ele me levar ao aeroporto. E então, até chegarmos em Guarulhos, mais lições grátis. “Ana ma’ rrk árab”, aprendi. “Eu não sei falar árabe.” Talvez esta seja a frase mais útil que o Ney me ensinou.


Figura curiosa, o Ney. Prometi levar uma lembrança pra ele.

*

Dois dias antes de Amsterdam, porém, e alguns dias após a macumba do Mirisola & suas mirisolettes, eu estava certo de que sucumbiria. Um canal maior que o de Suez estourou em meu molar superior esquerdo e achei que isso só podia ser sinal dos vingativos deuses egípcios que me aguardavam.

Meu dileto dentista Dr William B. me acalmou, entretanto, cimentando provisoriamente a enorme cratera e receitando Tramal 50, um poderoso analgésico à base de opiáceos. Dr William B. preocupou-se, quando eu lhe disse que a pena para o uso de drogas no Egito era morrer na forca. “Bem, seria uma forma meio drástica de combater essa dor de dente, caro Joca. Mas que resolveria seu problema, isso resolveria”, ele disse.

Minha paranóia tamborilou: eu estava liquidado. “Um homem esburacado destinado a uma cidade esburacada. Um homem arruinado rumo a uma cidade em ruínas: não tem jeito, as mirisolettes venceram”, pensei na hora.

*

Mas daí apareceu Amsterdam na janelinha do avião e tudo mudou.